Extremamente divertido e insanamente sangrento, novo filme da Netflix é um dos mais vistos do mundo na atualidade Divulgação / Netflix

Extremamente divertido e insanamente sangrento, novo filme da Netflix é um dos mais vistos do mundo na atualidade

Seres humanos só conseguimos apreender a riqueza semântica do mundo e nos tornar o que somos na medida em que vencemos a resistência dos demais — quase sempre obstinada além do razoável —, e provamo-lhes que somos mesmo o que dizemos ser, para o bem ou para o mal, audácia que não se comete sem alguma consequência. O homem empenha toda a vida temendo a postura que assume frente às vicissitudes que lhe atravancam o prosaico cotidiano, por mais que pense e repense seu proceder, justamente porque sabe que algum dia essa fatura vai chegar, a vida há de exigir-lhe satisfações e ele deverá prestar contas de tudo quanto fez — e tanto mais do que deixou de fazer. Acossado por suas próprias escolhas, apavorado com o que pode resultar delas, já que poucas vezes é capaz de tomar decisões sensatas, o gênero humano avança no tempo confrontado com um medo do futuro que não raro degenera na paranoia fundada numa insana disputa entre a luz e as trevas, conjuntura que o existir lhe apresenta sob a forma de um interminável ir e vir de sensações que beiram o absurdo.

Os mistérios que não revelamos nem para nós mesmos nos transportam para um tempo em que somos tomados pela necessidade de contar com heróis e heroínas que nos redimam, uma vez que nos descobrimos vítimas da trama malfazeja que escrevemos agora, e cujo desfecho não pode ser feliz. Aceitar o mundo como o conhecemos se constitui um tormento, e é ainda mais difícil tentar corresponder ao que podem esperar de nós aqueles que não nos conhecem e assim mesmo não manifestam pejo algum em arvorar-se em nossos juízes, ou nem isso, objurgando-nos por sermos quem somos, cruz que já carregamos sem sentir. Descontado certo determinismo tedioso, por alguma razão, o Oriente tem um jeito muito próprio de lidar com as mais complexas questões. No indonésio “Os 4 Malfeitores”, por exemplo, uma policial tenta desvendar um crime misterioso — e no qual está particularmente envolvida — e como resultado se depara com quatro meios-irmãos, que não lhe partilham nenhuma semelhança. Replicando alguns elementos usados em “A Noite nos Persegue” (2018), seu grande sucesso, o diretor Timo Tjahjanto leva essa história a bom termo valendo-se de uma sensibilidade fabulosa para desenvolver enredos pouco ortodoxos, porém sempre dispostos a fazer com que o espectador se ache na narrativa.

Junto com Johanna Wattimena, Tjahjanto faz vir a lume um caso de família de perturbadora obscuridade. Já no começo, “Os 4 Malfeitores” dispõe de notas de um terror psicológico tão contido quanto lancinante, momento em que um menino é trancado numa masmorra. Como se assiste, trata-se de um viveiro de seres humanos, usados para a extração de órgãos, traficados a peso de ouro para a elite do Sudeste Ásiatico. Eis a isca que fisga de vez o público ao passo que também serve de apresentação aos protagonistas. O bando liderado pelo ardiloso Topan, vivido por Abimana Aryasatya, conta com Alpha, personagem de Lutesha; Jenggo, o bom atirador encarnado por Arie Kriting e Pelor, papel de Kristo Immanuel. O quarteto de submete à autoridade de Petrus, de Budi Ros, que poderia se manter mais alguns bons anos no submundo, mas, decide mudar de vida, talvez balançado pela formatura da filha, Dina, na Academia de Polícia.

Putri Marino aparece com mais força na virada do segundo para o terceiro ato, momento em que se passa a reviravolta que dá azo ao filme. O encontro de Dina com os meios-irmãos, a quem também se junta Alo, uma improvável rival, de Michelle Tahalea, é uma explosão de sentimentos e emoções controversos, em que se odeiam e se amam, nessa ordem. No fundo, “Os 4 Malfeitores” é só um conto sobre as difíceis relações de família, ainda que as longas sequências de confronto ganhem um destaque um tanto exagerado. Mas famílias são mesmo um exagero por natureza.


Filme: Os 4 Malfeitores
Direção: Timo Tjahjanto
Ano: 2022
Gêneros: Crime/Comédia/Ação
Nota: 8/10