Baseado em livro de Annie Ernaux, o romance obsessivo e arrebatador, na Netflix, que você ainda não assistiu Divulgação / Magali Bragard

Baseado em livro de Annie Ernaux, o romance obsessivo e arrebatador, na Netflix, que você ainda não assistiu

Deixar-se envolver é uma decisão consciente, que vai tomando proporções cada vez menos racionais, vai adquirindo uma aura crescente de emoções que se libertam e se encastelam, processo mais e mais incontrolável, até degringolar enfim em obsessão, paranoia, frustrações, melancolia, tristeza. Em se admitindo a realidade por trás dos versos de Pessoa, existe amor só se houver também uma dose generosa de ridículo, de patético, daquilo tudo quanto fazemos sem nos darmos conta e que não raro atenta contra nossa própria natureza, dos comportamentos todos que jamais teríamos se nos pudesse socorrer a razão — e dos quais nos orgulhamos, apenas como um mecanismo de defesa, até sermos assaltados pela vergonha, que pode não demorar a vir, mas não costuma se estender muito. Quanto mais se instila a certeza de que há alguma coisa de sofístico, de artificioso, de falso na substância de uma relação, mais convencidos ficamos de uma autenticidade que se revela só para nós mesmos, que nos encanta precisamente por esse motivo e se nos parece ainda mais genuíno sob tal justificativa. E esse ciclo patológico de logro e agonia nunca se fecha.

A realidade paralela dos amantes, perdidos cada qual num momento específico do sentimento amoroso, é só um dos muitos critérios por que se pode avaliar o quão saudável ou doentio um relacionamento parece, e a partir dele logo chega-se às conclusões verdadeiramente perturbadoras que definem em que medida duas pessoas estão de fato comprometidas uma com a outra. Mas também é possível que as expectativas, os desejos, os sonhos sejam tão incongruentes, afinem-se tão pouco entre si que salte aos olhos a constatação de que os dois têm entendimentos diversos da mesma vida em comum, feito se, na verdade, não se conhecessem. “Pura Paixão” (2020) é a história de um romance que não resiste ao crepúsculo, tamanho o desencontro de que se compõe. A diretora Danielle Arbid tenta traduzir em imagens o caótico fluxo de consciência de dois personagens herméticos a seu modo muito próprio, um dando azo a demandas e objetivos diametralmente contrários aos da outra.

Hélène e Aleksandr saíram da pena de Annie Ernaux, a primeira escritora francesa agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2022, para ganhar vida nas boas interpretações de Laetitia Dosch e Sergei Polunin. O roteiro de Arbid se concentra justamente na simplicidade de uma trama sem nada de tão excepcional além de um homem e uma mulher que apresentam percepções muito diferentes de uma mesma experiência. Se por um lado Hélène, a professora universitária recém-divorciada de Dosch, pensa amar seu novo companheiro por, no fundo, apenas ansiar por algo que a faça sentir-se viva, seu amante sabe exatamente não tem necessidade alguma de reviravoltas de qualquer ordem. O que a diretora-roteirista e, claro, por extensão, também Ernaux remexem é no arcaicíssimo conceito do homem, sobretudo o mais jovem, sempre cobiçoso de aventuras extraconjugais, que encontra justamente uma parceira no extremo oposto, isto é, romântica quase ao desespero, algo solitária e muito, muito carente. Seria reducionista — e imperdoavelmente preconceituoso — dizer que Hélène se comporta assim por ter de se conformar, afinal, de que está no princípio de uma meia-idade sempre mais penosa para as mulheres, de que seus melhores dias são agora uma doce (ou amarga) lembrança, mas isso é tudo quanto se é capaz de depreender da narrativa, tanto no livro como no filme. Nunca se esclarece em que circunstâncias essas duas almas sofridas, cada uma a sua maneira, se cruzaram, e um detalhe aparentemente tão menor faz muita falta a dada altura.

O enredo acerta em cheio ao, na transição para o apogeu da história, colocar na bica de Hélène uma refutação explícita a uma postura que cheira apenas a machismo à primeira impressão, mas capta com argúcia a psicopatia de Aleksander. Há, por evidente, a separação pela qual o público espera (e torce) desde o início, emulando a bela cena que encerra “Os Girassóis da Rússia” (1970), de Vittorio de Sica (1901-1974), sem o trem. A forma como ela se dá é que define a grande surpresa de “Pura Paixão”.


Filme: Pura Paixão
Direção: Danielle Arbid
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10