Bonito de se ver e completamente absurdo, filme na Netflix vai te manter paralisado e agarrado no sofá Divulgação / Universal Pictures

Bonito de se ver e completamente absurdo, filme na Netflix vai te manter paralisado e agarrado no sofá

Paira acima da natureza de toda criatura a verdade inescapável de que a vida é feita de sonhos, e sonhos, por seu turno, desprezam sem cerimônia a lógica, o bom senso, o politicamente correto, ou seja lá de que qualquer outra nomenclatura queiram revestir-se o sistema de freios e contrapesos morais de que toda criatura sob o sol é dotada. Ao passo que nos escraviza a ideia de ordem, previsibilidade, método, perfeição, imagens e raciocínios os mais desvairados, os mais absurdos, perseguem-nos sem clemência, e, quer admitamos ou não, têm lugar cativo no pensamento de todo indivíduo que se recusa a dar por acabada sua interferência no processo civilizatório, uma vez que nunca se sacia o apetite do espírito do homem desde o princípio dos tempos. Essa fome do que não se entende, não se toca e sequer se revela se presta a, por contraditório que soe, indicar o que vale ou não a pena na busca pela beleza da vida, uma equação que a esmagadora maioria das pessoas não resolve, e pior, a que ainda devota um solene menoscabo, como se só porque seu curto entendimento passa ao largo das questões mais densas da condição humana, elas não existissem.

Julia Roberts e Clive Owen compõem um casal nada romântico em “Duplicidade”. Convencidos de que há muitas coisas muito mais importantes que a tolice pequeno-burguesa do amor, os dois tratam, cada qual com a firmeza e a disposição típicas dessas almas que nunca se furtam a uma cartada mais ousada do que aconselha a prudência, de ganhar a vida da maneira como conseguem, e vão fundo nisso. “Duplicidade”, de Tony Gilroy, mistura uma generosa porção de pragmatismo, uma visão de mundo cínica e de um niilismo militante e sarcasmo perspicaz, coroados por tiradas certeiras, a fim de falar das misérias humanas do jeito mais honesto, policiando-se por manter a narrativa na rédea curta da crítica acerca da necessidade de se fazer um nome respeitado no meio em que se atua e firmar-se nele, a custa de sacrifícios pessoais, renúncia ao sabor da vida ordinária, uma melancolia a toda prova e a solidão, esse algoz ambivalente, tão libertador quanto perverso.

Roberts e Owen são Claire e Ray, quiçá os espiões mais cheios de neuras e paranoias jamais vistos na história de Hollywood. Ela na CIA, o serviço secreto dos Estados Unidos, e ele no MI6, a agência britânica de inteligência, os dois se conhecem numa missão em Dubai, e a partir de então, o roteiro de Gilroy começa a pirar em situações de progressivo nonsense, como o improvável e contra indicadíssimo envolvimento sexual dos dois, circunstância que dá azo ao enredo central do filme, conduzido de modo a capturar de súbito o interesse da audiência, sem que se descuide das subtramas diversas que se vão sobrepondo ao fundo. Tanto a pragmática Claire como Ray, um romântico encarniçado e incorrigível, sabem que quanto próximos se tornarem, mais riscos trazem para o desempenho profissional e a própria relação, e é perturbadora a forma como, primeiro, o diretor resolve subverter o clichê e sempre fazer despontar da boca do elemento masculino as cobranças por atenção, comprometimento, delicadeza, a que a personagem de Roberts faz questão de fechar os olhos.

A entrada em cena de Howard e Richard, os carismáticos personagens de Tom Wilkinson e Paul Giamatti, garantem que o espectador tenha sempre em perspectiva que é um filme de crime e mistério, não obstante a parceria entre o casal de protagonistas nunca ceda à tentação de virar a chave de uma vez e contrabalançar a abordagem destacadamente policialesca, quase noir, restando um travo de amargura nesse vínculo meio doentio, orientado sempre pelo que pode haver de proveitoso na companhia de um e de outra. Mesmo nas passagens inegavelmente solares dos dois, como quando despertam irremediavelmente atrasados num hotel de luxo na Itália depois de três dias dedicados aos folguedos da carne, Claire e Ray denotam a tristeza de seu affair, condenado a nunca passar disso: encontros clandestinos em que quem finge melhor vai mais longe.


Filme: Duplicidade
Direção: Tony Gilroy
Ano: 2008
Gêneros: Thriller/Romance/Comédia/Ação
Nota: 8/10