Filme com Woody Harrelson, na Netflix, vai te manter com os olhos grudados na tela por 110 minutos Divulgação / Mississippix Studio

Filme com Woody Harrelson, na Netflix, vai te manter com os olhos grudados na tela por 110 minutos

Encarcerado nos castelos de neurose que não para de erigir, o homem nunca renuncia a suas obsessões, em muitas ocasiões seu único tesouro e o alento singular que lhe resta ao cabo de toda uma vida de desengano, sonhos gorados e medos renitentes, que refugiam-se-lhe nos meandros mais intrincados da alma, raramente se dão por vencidos — quase sempre sequer se batem em guerra, certos sobre quem leva a melhor — e tornam à carga todas as vezes em que farejam uma qualquer inconstância da alma humana, feito o predador sentindo o cheiro de morte na presa, estável como o mar açulado por um vento de tempestade. Nos momentos em que percebemos mais próxima a horda de invasores que ameaçam esse nosso domínio, os concretos e os imaginários, sentimos como se o mundo todo nos oprimisse, vamos cedendo ao peso esmagador da vida em sociedade, com gente empenhada em transferir-nos o dissabor de suas vidas amargas, entorpecida por centenas de questões e milhares de problemas de que raramente se livram de todo, ou por não conseguir ou por não ter coragem de remexer seu baú de ossos e encontrar o motivo de tanta angústia, de tanto desespero. Justamente por saber que toda essa sujeira, essa podridão que empesteia-lhe o espírito e aflora à carne, medra num campo em que já esteve e a que não deseja regressar.

Todos querem ter a vida o mais normal possível, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, sobrepõem-se dificuldades as mais improváveis, as mais impensadas, e as dúvidas que sempre aparecem em ocasiões assim não tardam a fazer estrago. Casos que tínhamos por definitivamente encerrados reemergem, e no vácuo de opróbrio, pesar e mesmo horror que deixam na subida, volta a surgir também a ânsia pela felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se tivesse se não a merecêssemos. A vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que avança sem que nada mais se possa fazer. O mundo em que os personagens de “O Duelo” despontam se assemelha a um caldeirão de velhas mágoas e outros sentimentos malditos, em que deixam-se ferver sem pressa, como a vingança que se deseja consumar algum dia. Kieran Darcy-Smith elabora um jogo de gato e rato que atravessa uma geração, e com o que vai se formando desse processo constrói uma história pungente, que atormenta por dentro e por fora.

Darcy-Smith abre seu filme mencionando a formação dos Texas Rangers, o tradicional corpo de policiais e investigadores nascido para fazer cumprir a lei num tempo em que a América vivia seu caos particular. Em 1866, a Guerra Civil, iniciada em 1861, terminara há pouco mais de um ano, e agora os mexicanos eram o alvo da milícia texana, eleitos como os novos inimigos, os forasteiros, o “lixo latino” que tinham de mandar de volta para além das águas do Rio Grande, que dividem os Estados Unidos do México. Na sequência, o roteiro de Matt Cook mostra dois homens se batendo numa disputa de vida e morte, expediente comum para que se dirimissem pendências em Helena, rancho perdido na imensidão do Velho Oeste. Quem assiste à querela parece menos interessado nos motivos de cada um que no simples derramamento de sangue, salvo David Kingston, o menino que vai presenciar o pai, Jesse, de Jimmy Lee Jr, ser morto por Abraham Brand. O diretor filma esse episódio, fulcral em tudo quanto virá ao longo dos mais de cem minutos restantes, de modo a realçar ao máximo a tensão que banha o rosto dos dois, ajudado pela edição cuidadosa de Tracy Adams, Blake Hjares e Douglas Slocum. O que vemos é o que aquele menino vê. Não é pouco.

Dezesseis anos depois, aquele menino é um homem feito, de barba hirsuta e meio solto demais, ainda que casado com a mexicana Marisol, vivida pela brasileira Alice Braga, cuja mão ganhou em pagamento a uma dívida de sangue. Liam Hemsworth se aproveita de seu bom physique du rôle para incorporar toda a densidade psicológica do protagonista, até o reencontro com Brand, de um Woody Harrelson que quase chega a encarnar o cinismo e a maldade gratuita de seu possível vilão, mas fica mesmo é na promessa. Hemsworth, por seu turno, transpira a ambivalência de seu anti-herói, sequioso por reparação, visivelmente embriagado, sedado até, por esse desejo. A certa altura do enredo, Darcy-Smith crava com mais força a ideia de que Jesse não era lá flor que se cheirasse, ao passo que incute em seu ator principal a imagem de um filho que cresceu sem pai, substituído por rancor invencível que nasce de uma tragédia dessa magnitude. Há momentos na vida em que o sangue se impõe.

O filme cresce justamente quando a história toma esse rumo, em que pese o desfecho deus ex machina do diretor, que tenta recuperar o tempo perdido com as fixações de Brand por Marisol. David se mostra incomodado com a admiração excessiva do adversário pela mulher que ama, mas para ele há coisas muito mais importantes que o amor.


Filme: O Duelo
Direção: Kieran Darcy-Smith
Ano: 2016
Gêneros: Western/Drama
Nota: 8/10