Na Netflix, rapper sensação dos anos 2000 cativa em história de cunho fortemente autobiográfico Divulgação / Eli Reed / Universal Studios

Na Netflix, rapper sensação dos anos 2000 cativa em história de cunho fortemente autobiográfico

A vida é uma sequência de incertezas, e dessas incertezas surgem questionamentos ainda mais profundos acerca dos temas mais improváveis, aqueles cujos desdobramentos assaltam-nos com mais violência nos momentos da jornada em que estamos miseravelmente sós, à espera de algum acontecimento entre mágico e brutal que nos possa devolver a crença de que viver tem sua graça e suas boas surpresas. Não é fácil aceitar o mundo como o conhecemos; e é ainda mais difícil tentar corresponder ao que pode esperar de nós aqueles que não nos conhecem e assim mesmo não demonstram pejo algum em arvorar-se em nossos juízes ou nem isso, condenando-nos por sermos quem somos, cruz que já carregamos sem sentir. Desajustes são especialmente comuns nas quadras da vida em que tudo o que se tem é pouco mais que a gana de seguir adiante, em que pesem vicissitudes as mais fustigantes, mas há quem enverede pelo lado sombrio da estrada com tanto gosto que passe a achar que o mundo deve-lhe, e em assim sendo, está autorizado a fazer qualquer coisa para que escapar ao tédio.

Viver em sociedade se nos apresenta como um desafio de intensidades variadas, a ser superado todos os dias. Confrontamo-nos com obstáculos incômodos o bastante para nos fazer abandonar nossos sonhos, mas esses sonhos só são mesmo nossos se tiverem força para resistir e justifiquem as alegrias raras que por seu turno valem por toda a angústia da vida. Todos somos dotados do poder das escolhas, e escolher enfrentar de igual para igual as pessoas que, morbidamente, empenham o que entendem por vida para que não cheguemos aonde desejamos é muito mais que justiça: é um imperativo moral. Marshall Bruce Mathers III lutou muito para ter o que julgava seu. Aos cinquenta anos, o músico é suficientemente maduro para saber que a carreira artística é instável por natureza e que seria uma ingenuidade querer conservar o sucesso dos vinte poucos anos, quando estourava como o primeiro rapper branco genuinamente popular, em diversos segmentos da sociedade e não só na pasteurizadíssima cena cultural americana. Curtis Hanson entendeu isso e tratou de dar sua explicação ao fenômeno. Mistura de biografia com musical, o drama “8 Mile — Rua das Ilusões” dá ao público leigo a oportunidade de travar contato mais direto com o talento e a história de vida de Eminem, o nome com que Mathers passou a se apresentar, sustentando que muitas das passagens pungentemente melancólicas do longa são mesmo verídicas. Aos fãs, o trabalho de Hanson serve de estímulo adicional para reverenciar um artista corajoso como poucos, que deixa clara sua satisfação em peitar o politicamente correto, e como resgate de sua trajetória num ambiente cheio de perigos que só os verdadeiros outsiders conhecem.

Jimmy Smith Jr., o alter ego de Eminem, é um homem sem qualidades. Triste, um tanto magro demais, aparentando muito menos que os trinta anos que tem, Smith Jr. — chamado de Coelho pela mãe, Stephanie, por ter sido um garoto orelhudo e dentuço — é o autêntico lixo branco. É justamente a relação do protagonista com a mãe, de Kim Basinger num desempenho acima da média, o gancho de boa parte das situações deslindadas pelo roteiro de Scott Silver, que, garantem os mais próximos a Eminem, refletem com lamentável grau de fidedignidade a vida do astro. Os dois moram de aluguel numa cabeça de porco perdida num beco qualquer do subúrbio mais afastado da moribunda Detroit, padecendo de um abandono progressivo e criminoso desde a debandada de quase todas as grandes montadoras de automóveis sediadas na cidade, resultado de anos de administrações ineptas e corruptas, irrigadas pela força dos propinodutos. Nesse lugar, a Milha 8 do título, Coelho, Stephanie e a pequena Lily, de Chloe Greenfield, tentam sobreviver, humilhados por uma constante ameaça de despejo, que só não se concretiza graças ao vício em jogos de azar da matriarca desse desditoso clã.

O filme interessa muito mais por esses detalhes nada óbvios, que escapam a um olhar mais apressado, do que pela ascensão de Coelho ao cenário musical dessa Detroit fantasmagórica, restrito aos guetos onde jovens como ele inscrevem-se em batalhas de rima menos para faturar uns trocados que para fazer o nome. O desfecho frustrantemente realista de “8 Mile – Rua das Ilusões” remonta à caminhada solitária de um artista em busca de reconhecimento, ao passo que tem de pagar as contas com ou sem sucesso. Fazer do sonho o feijão, eis a maior poesia de tipos como Coelho.


Filme: 8 Mile — Rua das Ilusões
Direção: Curtis Hanson
Ano: 2002
Gêneros: Drama/Musical
Nota: 8/10