Thriller escondido na Netflix vai tirar seu fôlego e te injetar uma dose de caos Divulgação / Vaca Films

Thriller escondido na Netflix vai tirar seu fôlego e te injetar uma dose de caos

O que entendemos por vida remonta, em verdade, a uma ideia de empenho por viver, isto é, a vida nada mais seria que uma sequência de especulações, descontroladas e avessas a métodos, quanto ao que o homem deseja e furta-se a desejar, num e no outro caso seguindo parâmetros bastante específicos. Desejamos o que nos parece inestimavelmente distante porque sabemos que as chances de o alcançar são mínimas; observando ao mesmo mecanismo, sufocamos aspirações assustadoramente próximas porque elas não se nos mostram instigantes o suficiente, não nos encantam, não conseguem, enfim, cavar um espaço num cérebro tomado por pensamentos os mais absurdos. O homem não sabe querer; no momento mesmo em que manifesta uma vontade qualquer, a natureza humana já principia a semear destruição por toda parte, evidência que aponta para uma conclusão um tanto óbvia: há que se declinar de toda vontade, mormente as que não se furtam a iludir-nos com vãs promessas de felicidade, que, supomos, irão nos conduzir a uma vida melhor — ou menos ordinária.

Desviar-se das vontades, do desejo, do sonho poderia ser o atalho para a ansiada plenitude, o que não deixa de ser uma deliciosa utopia em si. Existem muitas formas de se atingir o topo — até porque existem muitas concepções de topo —, e subir nem é assim tão difícil. Ainda durante a escalada, já confabulamos com nossas profundezas mil jeitos possibilidades de estender ao máximo nosso novo reinado, sempre muito mais efêmero que as ambições que o sustentam. Daniel Calparsoro tem intimidade com esses tipos impetuosos, que se lançam sobre a vida como um lobo à caça de uma presa esquiva, ou como essa mesma presa, consciente de que sua fraqueza é seu escudo mais intransponível. É quase palpável o desalento do protagonista de “Até o Céu” diante das situações nem intoleráveis nem maravilhosas da existência, cenário que o impele à decisão que muda sua história e que o leva a gozar os prazeres que tanto queria, todos com hora certa para acabar.

Calparsoro disseca o lado mais oculto da máfia espanhola, se dividindo entre Valencia, de onde parte o roteiro de Jorge Guerricaechevarría, Madri e Ibiza. Postulante a um lugar qualquer numa das incontáveis organizações criminosas da Espanha do século 21, Ángel, o mecânico vivido por Miguel Herrán, segue uma rotina de trabalho duro, mas alguma coisa em Herrán nos leva a crer que seu personagem há de virar a chave muito antes do que imaginamos, e tudo se dá exatamente dessa maneira. Durante uma noite de folga, numa boate da capital espanhola, Ángel reencontra Estrella, uma vizinha com quem cruzava no intervalo entre um e outro turno na oficina em que trabalha. O diretor deixa subentendida a influência da personagem de Carolina Yuste na nova vida que Ángel terá logo depois, e Yuste, muito mais que o protagonista, é quem sustenta o argumento pretendido por Calparsoro, o do rapaz pobre e meio ingênuo (ou quase), perdido entre o que é e o que quer ser.

A partir do segundo ato, o filme envereda por seu aspecto eminentemente policial, repleto de sequências em que Ángel e sua quadrilha realizam furtos de celulares em shows de grande público e assaltos a joalherias. Claro que numa dessas acaba preso, por Duque, o detetive interpretado por Fernando Cayo, de que se livra graças a Mercedes, a advogada contratada pelo bando, de Patricia Vico.

Até o desfecho, o que se vê é uma espécie de descrição meio romantizada do expediente de ladrões com anos de estrada, sem muita novidade. “Até o Céu” fica entre o mar e a terra, um tanto deslocado, salvo aqui e ali por performances acima da média, como a de Luis Tosar como o poderoso chefão Rogelio.


Filme: Até o Céu
Direção: Daniel Calparsoro
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 7/10