Do gueto para o mundo: documentário na Netflix mostra o despertar revolucionário de uma geração Alile Dara / Netflix

Do gueto para o mundo: documentário na Netflix mostra o despertar revolucionário de uma geração

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, mostra que 46% dos brasileiros se autodeclararam pretos e pardos, enquanto 42% se disseram brancos. Você pode não enxergar a realidade da cor do povo brasileiro no seu ambiente de trabalho, na sua escola, faculdade ou dentro de um shopping center, mas ela se revela quando você está no Centro da cidade, caminhando na rua, dentro de um ônibus, ou em qualquer lugar comum e acessível. Os pretos e pardos têm lugar no país, mas ele não é, na maioria das vezes, nos ambientes de privilégio.

A razão da população preta e parda ser tão grande por aqui vem de um dado histórico catastrófico. O Brasil é o país da América que mais trouxe escravos africanos entre os séculos 16 e 19. Sozinho, foi responsável por mais de um terço do comércio negreiro, e esses dados são atestados pelo próprio IBGE, uma instituição oficial e séria. O Brasil também foi a última nação do continente a abolir a escravidão, e só o fez por pressão política externa. Mas a própria proibição do sistema escravista no Brasil não é uma história bonita de contar, mas uma tragédia marcada por desprezo e dor. Sem nenhuma política de assistência ou proteção, os pretos foram lançados às sarjetas, à própria sorte e sem uma transição para a vida de trabalho remunerado, marcando o início de uma trajetória de miséria, violência e exclusão social. Mas não para por aí. De lá para cá, o Estado brasileiro imbuiu suas estruturas de poder com a prática do genocídio negro. Diferentemente de outros genocídios históricos escancarados e que pintaram manchetes de jornais, aqui o governo dá licença para matar, seja por meio da truculência policial, seja por fome ou por falta de acesso à saúde, moradia e saneamento. Com isso, há uma promoção forçada, silenciosa e cruel do branqueamento sistemático da população.

Em “Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mund”, documentário de Juliana Vicente sobre a história dos pioneiros do rap no Brasil, o grupo Racionais, mostra o despertar revolucionário da periferia negra de São Paulo por meio da música nos anos 1980. Se uma das passagens bíblicas mais icônicas de todos os tempos é “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”, os Racionas chegaram como enviados do próprio Deus para escancarar o completo abandono da periferia, onde as crianças dividem o campinho de terra batida da pelada com um cadáver assassinado há três dias.  Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay compõem o quarteto formado a partir de bailes do fim dos anos 1980 e que gravou seus primeiros discos graças à Zimbabwe, uma gravadora independente com foco em músicos pretos.

O documentário inicia com o trecho da faixa “Capítulo 4, versículo 3”, que expõe dados sobre o racismo estrutural no Brasil. “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.” Estes dados são de 1997, quando a música foi lançada, mas não mudaram tanto assim de lá para cá. Por meio de frases pesadas que escancaram a violência policial, os Racionais pregam contra o crime e uso de drogas como forma de subverter o sistema e dar algum futuro para a juventude negra. Eles foram e são, ainda hoje, o grito entalado na garganta dos meninos, meninas, mães e pais pretos de periferia. Em “Diário de um Detento”, canção feita a partir de anotações de Jocenir, um ex-presidiário do Carandiru, Mano Brown encarna uma testemunha da rebelião de 1992, que terminou em massacre.

Racionais foram uma espécie de Public Enemy do Brasil e inspirou outras centenas de rappers a usarem sua voz para expressar o sofrimento do preto pobre no Brasil. Como o rap sempre foi um gênero musical da periferia, é alvo de preconceitos e estereótipos, mas mais que isso, é temido, porque fala a verdade o que o governo, as autoridades e os brancos privilegiados não querem escutar. No filme, Mano, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay narram suas aventuras e desventuras pela estrada como músicos, fazendo seu ônibus de abrigo durante um confronto com policiais, a adaptação à nova vida endinheirada dentro da favela, as perdas e lutos e a constante busca por se reinventar e evoluir para trazer música de qualidade e que realmente cumpra seu dever social, como conscientizador e despertador da juventude. A montagem conta com acervos jornalísticos, arquivos pessoais e entrevistas antigas e recentes.

“Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo” é um documentário primoroso não apenas porque conta a história de um grupo musical lendário e revolucionário, mas porque há uma preocupação com a estética, o som e a maneira como a história é contada. Há verdade, e ela é quase tão intragável quanto as canções afiadas e agressivas do quarteto. A cada Marielle eleita, a cada Djonga que nasce, a cada preto que se forma em uma universidade, os Racionais MC’s mostram que sua missão se mantém bem-sucedida em reerguer a dignidade e autoestima dos pretos e colocá-los de volta em seu devido lugar: o de honra.


Filme: Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo
Direção: Juliana Vicenti
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 10/10