Obra-prima do cinema com Robert De Niro, Kevin Costner e Sean Connery está no catálogo da Netflix e vai te deixar sem fôlego Paramount / Netflix

Obra-prima do cinema com Robert De Niro, Kevin Costner e Sean Connery está no catálogo da Netflix e vai te deixar sem fôlego

Delinquentes de todos os coturnos experimentam de tempos em tempos o gosto da celebridade graças às revisões históricas que se apossam de determinados filmes, expediente deliberado que, além de caviloso, por tentar incutir no público uma verdade alternativa, fede à mais descarada apologia ao crime, o que dá azo a uma classe bastante peculiar de histórias sobre fatos delituosos que também esbarram no Código Penal. No Brasil, decerto “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha, é o único filme a apresentar o submundo da ilegalidade ao espectador admitindo a existência de policiais honestos, cônscios de sua real função junto à sociedade e nada inclinados aos encantos de quem quer que seja, da imprensa, da academia ou de certa elite. Filmes de época, por seu turno, acordam em nós sentimentos que não nos exigem muita elaboração intelectual; a emoção simplesmente aflora, e mesmo que sem querer, somos levados a refletir acerca de, agora, sim, uma realidade assumidamente paralela, a um outro mundo, onde tudo se reveste da aura de glamour que faz tudo parecer mais fácil, mais desejável. Entretanto, avultam perigos um tanto incontornáveis em toda essa fascinação, mormente em tempos estranhos que se caracterizam por divinizar tipos que deveriam receber, na mais branda das possibilidades, o repúdio de qualquer um que se pretenda honrado.

Definitivamente, a vida não é muito afeta a certezas, mas se pode dizer que há uma única certeza a pairar acima de toda criatura sobre a Terra: a de que a vida se constitui de sonhos os mais desvairados, de ideologias as mais absurdas, perseguidas incessantemente pelo homem — e tanto mais por certos homens, por aqueles que não esmorecem diante de adversidades que tornam a vida ainda mais embargada e teimam em se desfazer sem boa dose de empenho. Este é um caminho de curso sinuoso, sem método exato capaz de o dominar, mas que oferece boas surpresas a quem se lança a tal empreitada. Esses sonhadores são a gente rara e inabalável que muda em bem o muito que há de mal e proclama a diferença entre viver e apenas estar no mundo.

O roteiro sofisticado de David Mamet, o dramaturgo vencedor do Prêmio Pulitzer em 1984 pelo texto de “Glengarry Glen Ross”, peça logo adaptada para o cinema, volta a ganhar a dimensão que só as imagens na tela grande poderiam lhe conferir pelas mãos de um mestre nesse ofício. Mas Brian De Palma faz mais que só traduzir em movimento a pena de Mamet. Optando por dar voz a um esquadrão cheio de particularidades no combate a um grande mafioso, “Os Intocáveis” louva a coragem desses policiais, sistematicamente desacreditados numa Chicago apodrecida não somente pela afronta à lei, mas por seu sintoma mais nefasto, a corrupção endêmica, da polícia, dos políticos, do Ministério Público, do Judiciário. A fase mais incontrolável do tráfico de bebidas alcoólicas, uma praga durante o tempo em que vigeu a Lei Seca nos Estados Unidos, entre 17 de janeiro de 1920 e 5 de dezembro de 1933, banida com uma canetada do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), acolhida pelo Congresso, se prestou a uma verdadeira mina de ouro para agentes públicos que topavam se misturar com o grosso da bandidagem até, quiçá, chegarem a Al Capone (1899-1947), o duque do submundo aqui incorporado por Robert De Niro, que trazia no rosto bem escanhoado a marca da resiliência de quem não costuma jogar a toalha. Tentativa desesperada de dar freio a males colaterais da pobreza galopante que se avolumava desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como a violência doméstica e crimes de menor potencial ofensivo, como furtos e saques, a Lei Seca se desvirtuou tanto que uma consequência imediata da extinção da medida foi a queda vertiginosa no número de mortes em decorrência de beberagens fabricadas sem a menor observância de critérios de higiene, quando o que não havia mesmo era a simples desídia e os donos de alambiques clandestinos misturavam às preparações substâncias capazes de fazer a produção render, sem serem detectadas pelo consumidor, como a gasolina.

O grande mérito de “Os Intocáveis” — além do andamento levemente farsesco, com os toques de humor até pueril que amenizam o peso da narrativa, e, por óbvio, a música de Ennio Morricone (1928-2020), sempre bem-vinda — é mirar a história dos policiais que peitaram o desafio de derrubar o moralismo hipócrita e estúpido de leis inócuas e contraproducentes e fazer a América tornar à razão. Revivendo o Frank Hamer de “Estrada sem Lei” (2019), dirigido por John Lee Hancock, Kevin Costner vira um Eliot Ness (1903-1957) à altura do Jim Malone (1904-1976) de Sean Connery (1930-2020). A propósito, que saudade do Sean Connery…


Filme: Os Intocáveis
Direção: Brian De Palma
Ano: 1987
Gêneros: Thriller/História/Drama/Ação
Nota: 9/10