Fábula nietzschiana perturbadora e chocante, na Netflix, é uma pequena joia que muitos não conseguirão assistir

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As grandes decisões da vida de uma pessoa estão quase sempre à espreita, numa curva da estrada, num atalho tortuoso à primeira vista, sem se deixar perceber, sem se fazer anunciar, sem demonstrar que são a mágica possível quanto a transformar a crueza da realidade. Nunca houve nem há de haver regra que confira alguma ordem a esse processo, caótico por natureza, e cada um o absorve do modo como julga oportuno ou da forma que conseguir, mais uma prova de que viver foge a qualquer expectativa. A única certeza a pairar acima de toda criatura sobre a Terra é que a vida se constitui de sonhos, os mais desvairados, os mais absurdos, perseguidos sem descanso pelo homem, ávido por saciar a fome do espírito desde o princípio dos tempos. Esse apetite do que não se entende, não se toca e sequer se revela serve, por contraditório que soe, como o parâmetro por meio do qual se é capaz de dizer se vale ou não a pena seguir à procura pela beleza da vida, rara e diligentemente escondida. É esse o modelo uno a se observar quanto a se instituir a diferença entre viver e apenas estar no mundo.

Queremos todos ter a vida o mais normal possível, e uma vez que conseguimos, parece que se sobrepõem em nosso caminho toda sorte de dificuldades, as mais improváveis, as mais impensadas, momento em que nos assaltam as dúvidas que sempre aparecem em ocasiões assim. Começamos a questionar se isso seria uma pena qualquer por alguma falta num tempo já morto, de que nem nos lembramos mais, não nos conformamos com a interrupção brusca de nossa felicidade possível, condição pela qual lutamos tanto, e que nos escapa por entre os dedos, como se tivesse se cansado de nós. A vida simplesmente começa a ruir, processo que avança sem que possamos fazer nada, e quanto mais tentamos elaborar uma reação, mais delicado o cenário se torna. Em seu segundo longa-metragem, o diretor espanhol Gonzalo Bendala vai ao cerne de discussões repletas de circunvoluções filosóficas, a partir de um acontecimento trágico, que engolfa cada um dos personagens que dele participam. “Quando os Anjos Dormem” se presta a especular sobre o comportamento de um homem comum frente ao episódio que muda sua vida e o arrasta para o centro de um amplo debate acerca de assuntos que tocam ao indivíduo, como moral, arbítrio e psicopatia, e aos organismos sociais a que está subordinado, com destaque para a polícia.

Criando uma situação que se desdobra para muito além do que se poderia admitir depois de uma apreciação ligeira — como já fizera em “Innocent Killers (2015), seu primeiro trabalho —, Bendala conta a história de Germán, o pai de família amoroso e marido devotado de Julián Villagrán. O roteiro do diretor concentra-se neste personagem, embora passem a integrar a história vários personagens mais, em performances equilibradas, que puxam para cima a qualidade do enredo. O grande mérito do filme é fazer com que o espectador compre sem contestação nenhuma a ideia de que Germán é um mocinho típico, sem muitas nuanças de personalidade ou mesmo de temperamento. Quando lhe batem no carro, enquanto manobra para a deixar a seguradora em que trabalha e seguir para o aniversário da filha, Estela, de Sira Alonso, ele se exalta, por evidente, mas não a ponto de dizer um palavrão. A lhaneza algo calculada do personagem é absorvida por Villagrán, que faz dessa a qualidade de que se Germán vale para desvencilhar-se do grave obstáculo que se avulta para que continue sua vidinha prosaicamente feliz. Ficamos com raiva dele, muita, mas temos de reconhecer: este é um homem que enganaria o próprio diabo. Então, ele merece.


Filme: Quando os Anjos Dormem
Direção: Gonzalo Bendala
Ano: 2018
Gênero: Suspense
Nota: 8/10