Adaptado de livro clássico do prêmio Nobel Wole Soyinka, novo filme da Netflix vai te envolver completamente por 96 minutos Divulgação / Netflix

Adaptado de livro clássico do prêmio Nobel Wole Soyinka, novo filme da Netflix vai te envolver completamente por 96 minutos

Há pelo menos uma gota de sangue em cada oceano revoltoso das mais variadas formas de amor. A ciência, a medicina, a arquitetura e, claro, a arte seguem seu propósito de aperfeiçoar o gênero humano, mas neste exato momento diversas nações travam guerras — muitas vezes contra seu próprio povo —, a distribuição de renda é um escândalo que fere qualquer alma que se eleva um pouco acima do rés da bestialidade, muita, muita gente ainda morre de fome, e o culpado, no fundo, é falta de amor. Ou seja, a humanidade continuamos irredutíveis naquele que parece ser nosso projeto maior: ser nosso próprio lobo, avançar sem qualquer traço de misericórdia sobre aquela que deveria ser o coroamento do projeto máximo de um Deus pai, de um Deus… de amor. As complexidades mais profundas da existência, cercadas pelos problemas dos quais não nos livramos nunca, uma vez que de tão prosaicos acompanham-nos da promissora aurora ao crepúsculo, lírico em suas cores de morte, assaltam-nos o espírito com maior ou menor força todo santo dia, e tanto pior se, como o lagarto no deserto, empenhamos nossos talentos mais ignominiosamente louváveis quanto a fazer com que nossos predadores suponham que acabou nosso tempo no mundo. A vida só quer de nós aquilo quase nunca conseguimos dar, como ensinou aquele sertanejo refinado, joia rara que só mesmo o chão profundo de uma terra eternamente sem rumo pode gerar. As almas amorfas de homens desde há muito órfãos agradecem a pusilanimidade triste de cada dia, reduto de vulgares pretextos para justificar o passado que nunca passa, o atraso que sempre reina.

Todos já sentimos, em algum momento, como se nossas vidas não nos pertencessem, como se tivéssemos uma certa dívida de gratidão para com alguém, tão vultosa e tão cheia de desdobramentos, que chega a determinar em que medida podemos nos considerar donos de nossas próprias consciências, afinal, tudo tem um preço. Uma tradição bastante controversa é o mote de “O Cavaleiro do Rei” (2022), em que o diretor nigeriano Biyi Bandele (1967-2022) fala da intransigência do destino a partir de um argumento incompreensível à civilização, e com todos os motivos. Ainda que todo cuidado seja pouco quanto a se tecer análises sobre a cultura de um povo cuja história remonta a quase três mil anos, determinados aspectos de costumes que afrontam padrões aceitos em sociedades as mais distintas ao redor do mundo, por se chocarem, antes de mais nada, com o conceito de preservação das liberdades individuais.

Adaptado da peça “Death And The King’s Horseman”, do nigeriano Wole Soyinka, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1986, o roteiro de Bandele assume um ponto de vista espantosamente acrítico, como se a ninguém fosse causar espécie o que acontece na história. O diretor-roteirista, vítima da triste ironia de ter morrido, aos 54 anos, um mês antes de seu filme estrear no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, disserta com galhardia sobre o opróbrio da ocupação britânica na Nigéria, que só conseguiu proclamar sua independência em 1° de outubro de 1960, mas opta por deliberadamente atropelar a discussão sociológica do problema apresentado. A impressão que se tem é a de uma reparação deveras torta, pautada, como não poderia ser diferente, pelo politicamente correto.

O cavaleiro do rei de que fala o título é Elesin Oba, que com a morte do soberano do reino de Iorubá, deve se deixar abater a fim de evitar que seu líder se perca na transição do mundo físico para o plano dos mortos. Odunlade Adekola se sai razoavelmente bem no papel, ainda que seja prejudicado por uma caracterização quase bizarra, que lhe força a ostentar uma barba visivelmente postiça e em dois tons de grisalho — é o caso de se perguntar por que não escolheram um ator mais velho. Curiosamente, “O Cavaleiro do Rei” é o típico enredo de um ator só: apenas Adekola se destaca num elenco numeroso, com uma performance que, conscientemente ou não, desperta a reflexão sobre o caráter nefasto de regimes de governo fundados na pessoa de um homem, a despeito do continente e da época em se dê. A trama se passa na Nigéria de 1946, mas poderia ser no Brasil de 2022, sempre pronto a fazer vista grossa para desvios de personalidade dos poderosos que saem e que chegam (ou tornam a chegar). Com a diferença de que, no filme de Bandele, a decisão de Iyaoloja, a anciã que encarna a justica, de Shaffy Bello (também como no Brasil de hoje), é acatada à risca. E a sorte de Elesin se cumpre, afinal.


Filme: O Cavaleiro do Rei
Direção: Biyi Bandele
Ano: 2022
Gêneros: Aventura/Drama
Nota: 7/10