Suspense brutal e surpreendente da Netflix é um dos filmes mais vistos do mundo na atualidade Divulgação / Netflix

Suspense brutal e surpreendente da Netflix é um dos filmes mais vistos do mundo na atualidade

Filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, publicada em 1948, foi um marco no entendimento dos anseios da alma humana. A partir de sua mais ampla divulgação, povos do mundo inteiro tomaram pé da necessidade do respeito às diferenças, visto até então como mero capricho, como um ato de cortesia que os segmentos majoritários das sociedades ao redor do mundo prestavam aos desvalidos. No bojo das questões mais complexas a tocar o assunto, por óbvio, surgiram temas verdadeiramente delicados, que diziam respeito a ditos hábitos e costumes que integrariam uma certa tradição, à cultura ela mesma, e enfiar a mão nessa cumbuca nunca foi das medidas mais cômodas, nem para um povo, nem para seus líderes. Não por acaso, vigeram em países tão distintos quanto os Estados Unidos e a África do Sul regimes que admitiam a segregação racial como política pública, desculpa esfarrapada para ocultar as desigualdades estruturais advindas depois de séculos de escravidão e da subsequente exploração da mão-de-obra preta, desqualificada e barata. No caso do segundo, a simples tentativa de se revisitar pontos mais sensíveis do problema já é o bastante para suscitar novos debates acerca da mesma vergonha.

Na África do Sul, o apartheid continua a ser, mais que uma mácula, o passado eterno de uma nação próspera, obrigada a lidar com o desafio de virar uma página escrita com sangue. Grandes vultos da história sul-africana, a exemplo de Nelson Mandela (1918-2013), dedicaram a vida a tentar fazer com que essa chaga aberta no coração de seu povo — do povo preto em especial, claro, mas não só — cicatrizasse de vez; contudo, uma vez que os fatos históricos movem-se como num pêndulo, nunca se repetindo, mas obedecendo a um ritmo próprio, de poucos avanços e muitos retrocessos, episódios em que mulheres e homens não brancos são confrontados com uma realidade particularmente dura, que os fustiga por esse motivo (que, naturalmente, é apenas o cume de um monte bastante alto, íngreme e escorregadio) não somem do noticiário e estão longe de integrar o anedotário de um tempo morto. O sul-africano Fabian Medea conhece bem essa face horrenda de seu país e transpôs para “Vento Selvagem” (2022) um recorte muito preciso acerca da discriminação racial, onde adiciona também elementos de alto potencial de risco, como a atuação de uma dupla de policiais, um branco e o outro, negro, que cumprem suas atribuições, porém não se furtam a mergulhar na corrupção mais abjeta, saltando da propina miúda em infrações de trânsito aos milhões de rands do narcotráfico.

O roteiro de Medea já decola a partir da sequência inicial, em que esses dois personagens, tão polêmicos quanto carismáticos, abordam um motorista branco, levando no porta-malas uma carga que denuncia boa parte do horror que se vai ver ao longo de mais de duas horas. Pouco depois, Vusi, interpretado por Mothusi Magano, e Smit, de Frank Rautenbach, são destacados pelo Departamento de Homicídios da polícia de Joanesburgo para investigar a morte de Melissa van der Walt, a moça branca e bonita vivida por Izel Bezuidenhout, assassinada barbaramente depois de estuprada. É nesse ponto que o diretor-roteirista começa a preparar a virada que sintetiza o espírito de nosso tempo, mormente no que concerne a discussões espinhosas como a que da azo à trama. Uma sequência rodada num pub mostra Melissa aos beijos com um rapaz negro num primeiro momento; numa cena em que Vusi e Smit analisam imagens das câmeras do estabelecimento, Hensie, o funcionário do açougue do pai de Melissa, aparece surrando a ex-namorada. Daí por diante, tudo quanto era dado por certo se desmancha no ar, e muito por causa da performance calculada e emocional de Chris Chameleon.


Filme: Vento Selvagem
Direção: Fabian Medea
Ano: 2022
Gêneros: Suspense/Drama/Policial
Nota: 8/10