Suspense espanhol da Netflix vai ter perturbar por 96 minutos Divulgação / Manolo Pavón

Suspense espanhol da Netflix vai ter perturbar por 96 minutos

Amores geralmente vêm embalados em tragédias, irrelevantes ou as que têm força o suficiente para dar cabo de todas as ilusões — e os causídicos especializados em direito de família, uma categoria particularmente mavórcia dentre os advogados, provam à farta que casamentos não são tão resistentes quanto se imagina, por mais que o amor se imponha. Problemas de saúde, apuros de dinheiro, vontades que não se encontram, desavenças quanto à educação dos filhos: um torvelinho de motivos colhe relações de todas as naturezas, atestando que, por mais diferentes que sejamos, nossas agonias nos equivalem. Uniões se mostram verdadeiramente fortes quando, liquidado o hiato melancólico de solidão a dois, persiste, ainda que bem lá no fundo, o sentimento inabalável do bem querer, que emerge à superfície e revela as carências fundamentais de que o espírito de todos nós se reveste, em alguma medida. No instante em que nos convencemos, não sem boa dose de casmurrice, de que é mesmo impossível estar no mundo em alguma parte que não seja imediatamente contígua aquele certo alguém, sinos dobram com violência nos portões da eternidade, anunciando que o amor, mais uma vez, triunfou.

Não é exatamente corriqueiro sobressair-se ao caos do mundo e fazer frente aos logros da vida a dois. Entretanto, ainda mais extraordinário é compreender o que deseja de nós, sem mais tergiversações, o destino, arquiteto de castelos de areia que se acumulam uns sobre os outros num fenômeno tão exuberante quanto ilusório, até que tudo desmorona de uma vez e espalha pelo chão as emoções mais essenciais da vida. Jota Linares se socorre de metáforas igualmente estimulantes em “O Segredo de Nora” (2018), onde o espanhol mergulha na vida de um casal inundado pelo amor à luz de sua acepção burguesa e pequeno-burguesa, abastardada por demandas artificiais que os amantes tomam por determinantes para a harmonia e mesmo para a felicidade do casal. No filme, tornam-se patentes as muitas tentativas feitas por um homem e uma mulher no intuito de aparar suas diferenças, até que se guiam pela razão e veem que não podem mais seguir juntos.

O trabalho de Linares ecoa a abordagem do sentimento amoroso como uma prisão, por mais que a fotografia de Junior Díaz, hábil em destacar o céu luminoso e o clima ameno sobre as paisagens andaluzas. Nisso, o roteiro vai se achegando de um mestre nessa arte, que se fez lançando um olhar arguto sobre as relações humanas mais primárias, as que se erigem mediadas pela segurança enganosa de quatro paredes, até que tudo ferve rapidamente e extravasa, causando incômodos tidos por insignificantes, mas que degringolam nos dramas e tragédias que conhecemos na carne ou de ouvir dizer, mas que nos afetam em qualquer circunstância. “Uma Casa de Bonecas”, peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), escrita em 1879, é uma referência mais que evidente em “O Segredo de Nora”, na narrativa e na estética, a começar pelo nome da protagonista e pelo hobby que divide com o marido. Nora, a dona de casa visivelmente enfarada de Natalia de Molina, clama em silêncio por ser ouvida, condição a que se vai acostumando por causa da carreira política do marido, Abel, de Daniel Grao, em franca ascensão. A possibilidade cada vez mais iminente de que ele se eleja o chefe da província, em vez de empolgar Nora, implica num distanciamento crescente e sem solução, amenizado pelo hábito de dispor pequenos objetos numa estrutura de madeira. A metáfora, singela e cheia de pulso a um só tempo, poderia servir para chamar o público a comprar a história, não fossem as performances canhestras de Molina e Grao, nessa ordem.

O acréscimo de um batalhão de coadjuvantes, liderado pelo talento de Ignacio Mateos como Víctor, um tipo obscuro com quem Nora e Abel nutrem um mal explicado vínculo, só torna o andamento mais arrastado, até o desfecho, miseravelmente previsível e nada inventivo. “O Segredo de Nora” não faz justiça nem ao próprio título, muito menos a Ibsen, que decerto até tenta reviver e tentar ensinar alguma coisa sobre arte dramática a muita gente por aí.


Filme: O Segredo de Nora
Direção: Jota Linares
Ano: 2018
Gênero: Suspense
Nota: 7/10