O filme da Netflix que todo mundo deveria assistir para entender que família é para sempre e que os afetos sobrevivem ao tempo Divulgação / Netflix

O filme da Netflix que todo mundo deveria assistir para entender que família é para sempre e que os afetos sobrevivem ao tempo

O gênio de Liev Tolstói (1828-1910) lançou a sentença definitiva sobre a ventura ou a desdita das famílias ao dizer que as felizes obedecem sempre a um mesmo padrão, mas as infelizes o são cada qual a sua maneira. O tempo, caprichoso e implacável, não se prende a esperar por ninguém e passa, insensível aos apelos de quem precisa resolver questões fundamentais que se foram arrastando ao longo dos anos, amontoando-se uns sobre os outros como as várias camadas de bolor atacam um fruto largado pelo caminho. Naturalmente, aos dias difíceis também sucedem os momentos de calmaria e regozijo em que nossas energias se renovam e temos um pouco menos de dúvidas quanto à tal beleza inefável da vida, cuja chama não deixa de arder, por maior que pareça o nosso desalento. Sem esses alívios breves a vida tornar-se-ia inexequível e o homem estaria condenado a remoer suas tristezas buscando extrair delas o ânimo com que se manteria de pé, da mesma forma que uma criatura fantástica qualquer, que se acredita superior por não morrer nunca.

O mais que se vive serve apenas para que saibamos que a vida não faz mesmo sentido nenhum, mas se justifica de algum modo por conter em sua essência a inevitável morte, que ensina tanto ao moribundo e aos que sobrevivem a ele. Mais cedo ou mais tarde somos forçados a lidar primeiro com a ideia de finitude, que se consolida e passa a se mostrar como uma verdade irrefutável, que nos ronda com lhaneza ou assalta-nos sem prévio aviso e sem pena. De um jeito ou de outro, a vida só se reveste dessa aura de mistério e encanto porque é limitada pela morte, sempre uma intrusa nada conveniente ao lançar-nos ao rosto as verdades patentes que todos nos esforçamos por olvidar. A vida é esquecimento, segundo o ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), e as velhas sagas, para continuar com ele, despertam o interesse de públicos os mais variegados justamente porque este é um universo comum a todos. Desmembrando a vida de um clã que atravessa os anos sem conseguir curar suas feridas, o turco Berkun Oya dá a “Quatro Gerações” (2022) o verniz documental que se espera de um relato dessa natureza, sem prescindir da poesia.

O roteiro de Oya vai e volta no tempo, intercalando sequências no presente às passadas três décadas antes, quando uma família da Anatólia Central decide migrar do campo para a cidade na tentativa de superar a tragédia que permeia todo o enredo. A Turquia de hoje guarda lastimáveis semelhanças com a dos anos 1980, quando o golpe de Estado conduzido pelo general Kenan Evren, em 12 de setembro de 1980, ata o país a um histórico de recorrente instabilidade social: era o terceiro movimento antidemocrático em vinte anos. O diretor-roteirista passa ao largo da contextualização política, dando preferência ao processo de autopreservação dessas pessoas, já doloroso o bastante. Um esmerado trabalho de maquiagem garante que o espectador se deixe absorver por essa ideia do tempo implacável, encarnada por Havva, a personagem de Funda Eryiğit, envelhecida sem o emprego de computação gráfica. A câmera do filho mais velho, que se torna cineasta, registra o que sobrou de suas vivências, da casa em que cresceu, daquelas pessoas que aprendera a amar e se lhe tornaram tão distantes, de si mesmo.

Oya replica a bela estética de uma Turquia tão incrustada a um passado rural quanto suas montanhas abissais e milenares, situando nesse cenário os dramas de família comuns a qualquer povo a despeito da época, a exemplo que fizera Mahsun Kırmızıgül em “Mucize” (2015). “Quatro Gerações” se presta a descrever com riqueza de detalhes perturbadoramente crus a degenerescência de uma família, metáfora que alude à decrepitude da Turquia ela mesma.


Filme: Quatro Gerações
Direção: Berkun Oya
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10