Ninguém tem culpa por amar desse tanto

Ninguém tem culpa por amar desse tanto

Meu avô materno chamava-se Jairo. Morreu aos 93. Morreu de velho mesmo, na hora que quis. Não lhe faltaram o ar e os medicamentos, nem lhe tropicou o coração dentro do peito. Tão somente, cansou de existir e foi só isso apenas que sucedeu. Foi uma pena não ter emplacado o suposto último desejo de apagar o braseiro em casa, o centenário casarão onde nasceu e pelejou por toda uma existência.

Viver é resistência. Quando ele se foi, eu já era um sujeito adulto. Restou claro para mim que ele decidiu desviver à revelia. Foi fraquejando. Foi definhando. Foi se imiscuindo em definhar. Foi amiudando os músculos e apagando as faíscas das sinapses, até perder a conexão com os instantes e lhe faltar voz suficiente para solicitar o obséquio de sucumbir em domicílio, no quarto de sempre, no quieto de antes, quando ainda era vivaz.

Adivinho que o velhote, se não tivesse olvidado em optar, teria escolhido bater com as quatro sob os ares limpos da roça, na cama de colchão de capim, o seu habitat natural por décadas. Coisas assim acontecem, de não ter os desejos adivinhados e, quiçá, compreendidos. Ninguém que ame ao extremo outro ser humano tem culpa de acorrer com o enfermo para dentro dos recursos desesperados de um hospital. Todo mundo vacila no tête-à-tête com a morte, essa vadia desumana que sobre a humanidade flutua.

A despeito do amor descomunal, na infância, tive um motivo torpe para trocar de mal com o velho, mas, não troquei. Foi quando lhe pedi de herança o famoso revólver calibre 38, fabricado com cabo de madrepérola, que ele guardava dentro da escrivaninha no quarto do casal. Vovô alegou que já tinha empenhado palavra de honra para outro neto que tinha chegado antes de mim. Para amenizar a decepção em não herdar o trabuco, ele me prometeu o relógio prateado de bolso que, realmente, veio parar nas minhas mãos por meio das mãos campesinas, de dedos tortuosos, artríticos, da minha avó, assim que ele esticou as canelas.

Outro dia assim do nada, como se um sopro no ouvido, fui pego pela lembrança viva de um fato peculiar e morto, um episódio de ternura, de companheirismo extremo que me inspirou a escrever essas linhas. Eu passava férias na fazenda. Não me lembro quantos anos eu tinha à época, mas, tinha idade bastante para testemunhar um acontecido do qual nunca mais me esqueceria. Estávamos eu e o velhote sentados no antigo banco de madeira, em frente à sede da fazenda. Jarico preparava um palheiro. Eu observava encantado a dança lenta das mãos calejadas, porém, sem vontade nenhuma de querer fumar.

Depois de lamber a fina palha do milho, vovô avisou que vinha vindo um carro pela estrada. Espichei os olhos, atinei os ouvidos, mas, não enxerguei carenagem, muito menos ouvi motor de viagem. Acho que ele já se acostumara a escutar os silêncios dentro dos ruídos e vice-versa, pois, mal tive o prazo de contar até cinco, quando um carro apontou no cocuruto da estrada, desceu velozmente a ladeira de cascalho e veio estacionar bem na nossa frente.

Tinha um quarteto de desencarados dentro da lata velha. O cara que estava sentado na frente, no banco do carona, baixou o vidro, assuntou por um bom dia e foi logo perguntando se o meu avô era dono do cavalo baio de pelagem precária e idosa que pastava tristonho no piquete ao lado. Charuto era o nome do pangaré manso, lerdo, veterano e sem raça no qual a criançada montava para brinquedos de roça. Estava quente feito o diabo e o animal ressonava em pé a mastigar o capim seco, a espantar as moscas e os maus presságios com as orelhas meio tronchas e o rabo grisalho.

O sujeito perguntou aquela pergunta sem se dar ao cuidado de descer do carro para recitar a sua graça. Vovô Jarico disse que sim que o cavalo lhe pertencia e era seu. O homem quis saber, por fim, se o bicho estaria à venda. Jarico retrucou quem é que queria saber daquilo, o porquê da inquisição. O estranho apresentou-se com um codinome robusto do qual não me recordo. Acrescentou que ele e os companheiros embarcados no carango residiam nas imediações e tinham por hábito passar pelas fazendas habitadas e desabitadas, a fim de assuntar se tinha animal ferido, doente, mal zelado ou aposentado de lida para ser arrematado ou amealhado para o abate em açougue.

O vô acendeu o palheiro, puxou fundo a fumaça de tabaco e soprou para o alto, incomodado com a visita. Respondeu que o animal não estava disponível nem para venda nem para empréstimo nem para doação. Um dos homens que estava sentado no banco detrás gargalhou insolente e diagnosticou que o animal parecia deveras combalido, em final de carreira, por que não aproveitar o ensejo e fazer algum dinheiro vivo nele que logo quedaria morto, ao invés de escrúpulos em deixar a criatura decrépita a decrepitar ainda mais pelo avanço da idade, padecer e ser cutucado pelos urubus.

Todo mundo dentro do Monza gargalhou, mas, a gente não achou graça nenhuma naquilo. Para atalhar a conversa na direção do fim, Jarico sentenciou que o cavalo era bicho de estimaçã dos netos e estava findado o trololó. O sujeito feio com cara de cavalo insistiu que o pagamento era no cash, cédula em riba de cédula, e que ele estava perdendo uma baita oportunidade de fazer negócio com eles. Vovô falou o negócio é o seguinte, companheiro, vocês podem rodar a chave na igniçã e seguir viagem porque aquele pangaré está sentenciado a morrer comendo grama, pagando preguiça e carregando na cacunda meninos e meninas de um lado para o outro, para cima e para baixo, enquanto tiver força, fé, pacença e disposiçã.

O motorista puxou a aba do boné para baixo em sinal de anuência e pisou fundo no acelerador, soltando uma poeira fina, vermelha, deseducada que se misturou à fumaça alva do palheiro, criando um matiz incomparável que nunca mais me despregou da memória. Vovô perguntou se eu podia fazer o obseque de buscar um cadinho mais de palha seca de milho no paiol. Eu disse é claro vovô e saí saltitando pelo gramado enérgico feito um cabrito, contente feito um cachorro.

Desinteressado com a treta, Charuto não arredou um passo sequer e perpassou pelo restante do dia a mastigar gramíneas e a espantar as moscas, à espera do que Deus quisesse.