Novo filme da Netflix, com Mila Kunis, é o filme mais indigesto e perturbador de 2022 Sabrina Lantos / Netflix

Novo filme da Netflix, com Mila Kunis, é o filme mais indigesto e perturbador de 2022

O diálogo mais marcante de “Uma Garota de Muita Sorte” ocorre mais ou menos no meio do filme, quando Aaron, diretor do documentário sobre um massacre que houve na escola em que a protagonista do filme, Tiffany Fanelli, estudou no ensino médio, diz a ela sobre a importância de contar sua versão da história para ajudar muitas outras mulheres. Tiffany responde que “todas elas vão ficar bem”, de qualquer forma. E é assim que no mundo mulheres têm sobrevivido a traumas, agressões e sobrecargas… encobrindo sua dor e agindo como se tudo estivesse bem.

Tiffany é uma mulher bem-sucedida profissionalmente, bonita e está noiva de um ex-campeão de lacrosse da faculdade, um galã de família abastada. Ele tem, como ela própria diz, o que ela não tem: pedrigree. Aparentemente decidida e segura, Tiffany é o tipo de mulher que você acredita que tem a vida perfeita. Mas o passado dela esconde feridas muito profundas e que ainda queimam. Quando o diretor de cinema Aaron a procura para fazer parte do documentário sobre o massacre, as rachaduras de sua instabilidade emocional começam a transparecer.

Quase todos os algozes de Tiffany foram mortos no tiroteio do colégio, em 1999 (uma referência ao ataque de Columbine), por um adolescente com quem ela se confidenciava. A verdadeira tragédia por trás da vida de Tiffany não foi exatamente o fato de um atirador ter entrado na escola, mas um estupro coletivo sofrido em uma festa semanas antes. Como era bolsista do colégio particular que a colocaria em uma universidade da Ivy League (as maiores e mais importantes do país), Tiffany decidiu engolir sua dor e não denunciar os estupradores: garotos brancos, ricos, malvados, privilegiados e superprotegidos.

Convenhamos, ela não estava de tudo enganada. Dificilmente algo realmente aconteceria com os jovens e ela, provavelmente seria exposta, poderia ser prejudicada e ter seu futuro arruinado, caso decidisse denunciar. O caso de Mari Ferrer, no Brasil, nos faz ter uma noção de como histórias como a de Tiffany são reais e comuns em todo o mundo.

Em “Bela Vingança”, de Emmerald Fennel, a protagonista Cassandra desiste de seu futuro brilhante no curso de medicina para vingar dos estupradores. Já em “Uma Garota de Sorte”, Tiffany é treinada pela mãe a focar em seu futuro, ser bem-sucedida e simplesmente enterrar todas as feridas que possam atrapalhá-la a alcançar seus objetivos. No entanto, ao longo do filme, vemos que essas marcas do passado não estão se cicatrizando dentro dela, mas crescendo e a consumindo por dentro.

Mulheres são constantemente descredibilizadas pela sociedade. Sempre vistas como interesseiras, invejosas, ciumentas e vingativas. Os homens, autores das violências, se saem, quase sempre, como vítimas dessas “predadoras”. Essa é uma realidade muito cruel. E, sabemos, enquanto acompanhamos a história de Tiffany, que mesmo se ela denunciar o que sofreu, será julgada pela opinião popular, que dificilmente tem compaixão e empatia. Especialmente quando seu agressor é um homem branco, defensor da família, da religião e dos bons costumes.

Criticado por tentar justificar massacres em escolas, o filme falta, sim, um pouco mais de seriedade e profundidade ao retratar um tema tão delicado. No entanto, não erra completamente ao falar que existe, de fato, uma certa impunidade que beneficia a classe social de cima. A protagonista é constantemente julgada como rasa por seu desejo de ascender socialmente, inclusive, por meio de um casamento. Mas é aparentemente mais uma válvula de escape. Tifanny decidiu incorporar os sonhos de sua mãe, já que percebeu o quanto mulheres, especialmente de baixa renda, são facilmente exploradas e subjugadas sem que seus agressores se sintam minimamente culpados ou mesmo se reconheçam como abusadores. Ela precisa de status para se proteger.

Se há problemas de substância no filme, é apenas uma consequência de algo que faltou no livro de Jessica Knoll. O que realmente incomoda na produção é o tom exagerado adotado pelo diretor Mike Barker, que dá uma impressão de melodrama novelesco. Para todos os efeitos, “Uma Garota de Muita Sorte” traz temas importantes e que só de serem repercutidos, fazem algum bem.


Filme: Uma Garota de Muita Sorte
Direção: Mike Barker
Ano: 2022
Gênero: Suspense/Drama
Nota: 8/10