Violento, trágico e perturbador, um dos grandes momentos da história do cinema está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Wild Bunch

Violento, trágico e perturbador, um dos grandes momentos da história do cinema está na Netflix e você não assistiu

Há quem seja capaz de verdadeiras barbaridades para ganhar a vida. Quando nota que está começando a se encalacrar, torturado pelas tantas dívidas que contrai a fim de manter o padrão de vida que lhe disseram ser o minimamente razoável para ser considerado digno, o homem se transforma no animal selvagem do qual ainda pouco se sabe, mas que tem o ímpeto e a cólera que só arrefecem quando se convence de que a subida não tarda. Fomos desenvolvendo necessidades que não nos satisfazem, e a medida que essas falsas carências são supridas, tratamos de criar outras imediatamente, para que não se quebre a corrente e nem se tenha o atrevimento de se supor que é possível uma vida diferente, em que o dinheiro tem o seu lugar, por óbvio, mas nunca toma o centro do palco. Nos últimos setenta anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o homem foi ficando viciado na comodidade asfixiante de habitar os grandes centros, cada vez mais atolado de trabalho e, por conseguinte, cada vez mais enfastiado, desapontado, infeliz, ainda que aplacando seu mal-estar generalizado em shoppings, comprando, consumindo, botando seu vil metal na praça, fazendo o dinheiro circular ao passo que se realiza momentaneamente com os gozos fugazes do capitalismo, alimentando um lado perturbador de seu universo particular, esforçando-se por sufocar suas ideias, desejando manter enjauladas suas vontades mais íntimas e esquecer as tantas expectativas acerca da vida que ele inventou para si, justamente por saber que pode nunca chegar a atingi-las. O homo sapiens sapiens, a espécie mais curiosa encontrada sobre a Terra, tem uma dificuldade suicida de obedecer a regramentos que atentem contra sua natureza egocêntrica, resquício atávico da vida pré-histórica em cavernas e copas de árvores, quando era obrigado a armazenar energia para fugir de predadores e elaborar mecanismos para garantir o almoço do dia seguinte.

Uma das discussões que “A Qualquer Custo” (2016) certamente levanta — o faz sem nenhum alarde, mais uma razão para que se não se perca o assunto de vista — é quanto à importância do dinheiro. O escocês David Mackenzie vai pontuando seu filme com diálogos que se prestam a estudo psicológico de dois personagens, irmãos, bandidos, mas diferentes em tudo, inclusive na forma como enxergam a necessidade de vencer na vida, leia-se ter dinheiro, muito dinheiro. O roteirista Taylor Sheridan prepara o espectador para as emoções fortes de uma história que ferve na temperatura exata, até ficar tão explosiva que nada mais pode conter.

“A Qualquer Custo” abre como a porteira meio emperrada de um rancho perdido na imensidão do sul dos Estados Unidos, dando a entender tudo quanto o filme não é. Elsie, a gerente do Texas Midlands Bank de Archer City, uma boa participação de Dale Dickey, chega para mais um dia de expediente, que, tudo leva a crer, será tão pacato como todos os outros. Essa impressão se desvanece cerca de meio minuto depois, quando é surpreendida por Toby e Tanner, os irmãos assaltantes vividos por Chris Pine e Ben Foster. Sheridan esmera-se por preservar o carisma dos personagens, fazendo-os dizer os chistes e as pilhérias improváveis em circunstâncias que tais, mas que, por evidente, cabem perfeitamente em ficções com esse teor. Toby e Tanner têm a intenção de reproduzir a mesma estratégia — visar agências pequenas de cidades sossegadas, esquecidas pelas autoridades, mas cheias de moradores armados até os dentes —, parando apenas quando tiverem os 43 mil dólares equivalentes à hipoteca da casa da mãe, morrendo de um câncer terminal, e algum extra para cobrir os vários meses de pensões atrasadas de Toby (o desempenho de Pine como o caubói fora-da-lei bonitão e cheio de conflitos éticos e absolutamente  desconfortável com o sexo oposto é irretocável). Ainda são bem-sucedidos na segunda empreitada — momento em que se conhece um pouco melhor a alma destroçada e sensível do personagem de Pine numa (não) conversa com Jenny Ann, de Katy Mixon, a garçonete que o atende no diner em frente ao banco —, malgrado Tanner seja obrigado a sair correndo com as cédulas por dentro da camisa, se lhe escapando pela rua, um lance meio à Jerry Lewis (1926-2017). É a deixa para que o xerife Marcus Hamilton, um dos grandes papéis de Jeff Bridges, e Alberto Parker, seu adjunto caboclo interpretado por Gil Birmingham, entrem na história.

Mackenzie segura a ação o quanto pode, recheando o enredo com passagens luminosas, a exemplo daquela em que Hamilton e Alberto são servidos pela atendente mais mal-encarada da América, a de Margaret Bowman. Pouco depois, o terceiro ato deságua, afinal, no western moderno que prometia desde o princípio, com uma das sequências de tiroteio mais bem filmadas do cinema. O acerto de contas entre os personagens de Bridges e Pine coroa uma trama genial, onde tudo tem o seu lugar preciso e a hora exata para acontecer. E não acontecer também.


Filme: A Qualquer Custo
Direção: David Mackenzie
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 10