Literatura e direitos indígenas em novo romance de Frei Betto Divulgação / freibetto.org

Literatura e direitos indígenas em novo romance de Frei Betto

“Tom Vermelho do Verde” (Rocco, 2022), oitavo romance de Frei Betto, é baseado em eventos históricos. Romances históricos costumam ter cada vez mais apelo comercial, uma vez que acumulam dupla função: a de entreter e a de informar. Além disso, o romance histórico contemporâneo propõe, na maioria das vezes, um ponto de vista periférico, isto é, uma história paralela aquela proposta pela historiografia oficial. De forma que a ficção histórica acaba por oferecer ao leitor uma espécie de contranarrativa.

Esta é a intenção de Frei Betto ao escrever seu mais recente romance que versa sobre a construção da rodovia BR-174, na década de 1970, cujo traçado cortaria as terras dos índios Waimiri-Atroari. O romance se passa na época da ditadura militar brasileira em que boa parte da alta cúpula dos militares se mostra a serviço do interesse dos EUA. Além disso, a narrativa apresenta o interesse dos norte-americanos pela exploração da riqueza existente em território amazônico. Os satélites do Pentágono haviam mapeado a região e identificado ouro, bem como outros minerais em abundância. Os pastores, dirigentes das missões, acalentavam projetos de exploração mineral e intentavam alcançar as riquezas que se encontravam debaixo do solo usando como fachada a evangelização dos indígenas. 

Tom Vermelho do Verde
Tom Vermelho do Verde, de Frei Betto (Rocco, 208 páginas)

Antes da dizimação dos indígenas, daí o nome do romance, houve uma “suposta” tentativa de aproximação da Funai em relação aos Waimiri-Atroari. Uma expedição comandada pelo sertanista Vitorino Alcântara deixou Manaus, em outubro de 1968, com o intuito de fazer contato com os índios e promover o deslocamento da aldeia para um local distante da construção da BR-174. Um dos mateiros do grupo, chamado Fulgêncio, infiltrado pelos militares, armou uma emboscada com o auxílio de alguns indígenas — por ele ludibriados, dando cabo em toda a equipe de Vitorino Alcântara. Fulgêncio saiu como único sobrevivente e única testemunha do ataque, enquanto a culpa da chacina da expedição da Funai recaiu inteiramente sobre os índios. Sendo os indígenas considerados perigosos e não havendo alternativa, restava ao governo exterminá-los em nome do progresso. Desta feita, foram mortos cerca de três mil Waimiri-Atroari em menos de cinco anos.

Ainda que as personagens bettianas não se transformem em uma barata como na literatura de Franz Kafka, é possível notar o papel que um simples inseto assume na narrativa de “Tom Vermelho do Verde”. Enquanto o sertanista Vitorino Alcântara, ao longo do capítulo II, apresenta ao coronel Fontoura (principal responsável pela construção da BR-174) seus conhecimentos sobre os Waimiri-Atroari uma barata se movimenta pela sala de reunião em zigue-zague. Embora atento a explanação, os olhos do coronel ora fitavam a barata ora o sertanista. Por diversas vezes, o palestrante quase pisou na barata que parecia desnorteada, assustada e indecisa. Ao final da exposição, o inseto acaba sendo esmagado pela sola do sapato do sertanista, tendo o coronel como única testemunha. A barata pisoteada e esmagada pode, muito bem, funcionar como uma metáfora daquilo que os índios representam para o poder estatal: absolutamente nada. Os indígenas, tal qual uma barata, podem ser esmagados e exterminados a qualquer momento, como de fato o foram e continuam sendo.

De modo geral, Frei Betto costuma representar em seus romances grupos sociais marginalizados. Em “Hotel Brasil”, as crianças de rua alcançam visibilidade e são representadas como vítimas de uma sociedade excludente. Em “Aldeia do Silêncio”, os camponeses, ou pequenos agricultores, são retratados como vítimas dos latifundiários, que não poupam esforços para lhes tomarem as terras (a qualquer custo!). Em “Tom Vermelho do Verde”, como não poderia ser diferente, o povo Waimiri-Atroari é vítima de um massacre por se recusar a sair de suas terras para a construção da BR-174, tudo em nome do progresso amazônico.

Há algumas correlações entre “Tom Vermelho do Verde” e “O Dia de Ângelo”, primeiro romance de Betto. Ambos se passam no período do regime militar. Ambos possuem insetos como personagens. Ambos, no capítulo derradeiro, dão um salto no tempo para além do período ditatorial, sendo concluídos no momento presente ao da escrita do texto ficcional. “O Dia Ângelo” termina no período constituinte, concomitante à publicação do romance. “Tom Vermelho do Verde” conclui a narrativa durante o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro.

O coronel Fontoura, idoso e debilitado, visita o major reformado Paulo Cordeiro, agora presidente da Holos Global Investimentos, com sede em Manaus. Em meio à conversa, o major Cordeiro, que tem uma foto oficial do presidente Jair Bolsonaro atrás de sua poltrona, diz que a função de seu cargo atual é “fazer a ponte entre os fundos de investimentos estrangeiros e empresas que atuam na região. E tomar providências jurídicas e políticas para desmontar essa onda denuncista de queimadas, garimpos ilegais, invasões de áreas demarcadas e, em especial, destravar o maior empecilho ao desenvolvimento da Amazônia, como o senhor bem sabe: as tribos de índios”. 

Os relatórios da Comissão Nacional da Verdade, tornados públicos em 2014, afirmam que os povos indígenas estão entre os grupos sociais mais duramente perseguidos pelos militares. Em “Literatura e Direitos Humanos” (2018), livro organizado por Regina Dalcastagnè, entre outros, fomenta-se que o motivo dessa perseguição é o fato de que “os povos indígenas detinham e detêm terras, daí a necessidade de exterminá-los discursiva e materialmente”.

O romance de Frei Betto surge como uma possibilidade de denúncia contra o extermínio discursivo dos indígenas, que ganham voz e vez na narrativa bettiana. O livro é enriquecido por mitos e lendas indígenas, além de apresentar um contraponto sobre o ser e o estar no mundo em relação aos kinja (gente de verdade) e aos kaminja (homem branco).