De tirar o fôlego, filme subestimado na Netflix não te deixará piscar por 104 minutos Lacey Terrell / Universal Pictures

De tirar o fôlego, filme subestimado na Netflix não te deixará piscar por 104 minutos

A morte não passa de um ádito deste mundo para algum lugar de que ninguém jamais voltou, mas que nos espera a todos, agora ou daqui a um século. Essa parceria entre morte e tempo, os dois remetendo a uma ideia de finitude, ora exaltando os sentimentos mais nobres do homem, ora aprisionando-o numa espiral de paranoia, delírio e rancores que se transmutam de um plano a outro, vem de muito longe. A literatura universal, tanto no Ocidente como num Oriente ainda por ser desbravado e entendido, oferece um sem fim de exemplos que admoestam o gênero humano a conformar-se com o que lhe prepara o destino, ao passo que, para lançar a dose exata de conflito numa fogueira já monstruosamente poderosa, incitam-no a se voltar contra as injustiças da vida, bater-se contra aqueles que ousam interditar seus projetos e, o mais importante, urdir uma deleitosa vingança contra quem parece uma ameaça, real ou nem tanto, a sua felicidade. E para tudo isso é imprescindível contar com a ajuda providencial do senhor de tudo quanto respira.

Aceitar que toda vida, por mais fascinante que pareça, tem um limite, que a morte, tarde ou cedo demais, institui sua superioridade sobre a existência e que há que se respeitar os desígnios de um ente superior, para quem crê, ou do mero fado aos que duvidam de tudo, nunca foi propriamente fácil — e a prova irrefutável são as inúmeras histórias já publicizadas e as que ainda se farão conhecer a esse respeito. “Correndo Contra o Tempo” (2019), relato meio nonsense de Jacob Aaron Estes sobre a morte, a vida e os absurdos de uma e outra, se vale do conceito da narrativa elástica a fim de sustentar o mistério que dá azo à premissa da história. É possível se receber avisos do além-mundo acerca de uma série de homicídios, fazer com que o relógio subverta seu curso natural e assim essas vidas sejam poupadas? O roteiro do diretor, coescrito com Drew Daywalt, introduz o conflito em que a história é ancorada com o auxílio de subtramas aparentemente ineficazes, mas que reunidas se prestam a guiar o espectador por um labirinto de falsas impressões e sentimentos verdadeiros, porém confusos.

Jack Radcliff, o típico detetive angelino personificado por um David Oyelowo milimetricamente talhado para o papel, supera as mazelas do relacionamento com o irmão dedicando-se à sobrinha Ashley, de Storm Reid. Garret, o pai de Ashley vivido por Brian Tyree Henry, não é exatamente um modelo a ser seguido pela menina. A despeito de apresentar um distúrbio psiquiátrico sobre o qual Estes e Daywalt não se aprofundam, o personagem de Henry passa a vender drogas na tentativa de financiar o próprio vício e abater parte do que deve aos traficantes. Temendo que a garota se desvirtue de alguma forma, esse tio não se furta a agir como um pai devotado, sem querer saber se está tomando a atitude certa, se o irmão ou a cunhada, Susan, interpretada por Shinelle Azoroh, estariam em dívida para com ele ou se negligenciam a filha. Não por acaso, esse tomo do enredo é aberto com uma sequência em que Ashley, entre constrangida e quase apavorada, telefona para Jack expondo uma situação de abandono e ele vai em seu socorro. Pouco depois, eles são vistos na lanchonete conversando sobre como tem sido a postura de Garret como chefe de família. E o que Jack ouve da garota não o agrada. Aaron Estes voltará a dispor desse mesmo cenário lúdico para desenvolver as passagens que levam ao clímax do filme.

Ao receber a ligação de Ashley que desencadeia seu inferno particular, o personagem de Oyelowo, cego pela dor, começa a se habituar com a própria loucura, momento em que o diretor faz uso de boas metáforas quanto a definir a agonia do luto. Ao passar por cima das ordens do comissário Howard, de Alfred Molina, Jack põe a cabeça a prêmio, e só recua devido à ameaça real de ser afastado não só das investigações do assassinato e do homicídio subsequente como da polícia. “Correndo Contra o Tempo” replica muito do clichê de quase todas as produções congêneres — o tira boa-praça atormentado por uma tragédia íntima que sonha com a merecida reparação —, mas se salva dando fôlego à abordagem sobrenatural, visto de modo semelhante em “Os Outros” (2001), dirigido por Alejandro Amenábar, ou pelo recente “O Telefone do Sr. Harrigan” (2022), de John Lee Hancock. A corrida contra o tempo a que se refere o título pode servir para livrar Ashley da morte, mas, para tanto, Jack terá de provar a si mesmo que tem cacife para bancar esse jogo de gato e rato com o imponderável.

A fotografia de Sharone Meir ajuda o público a se deixar absorver pelos enigmas da trama, como o porquê de Ashley parecer estar sempre molhada e quem ou o que é Georgie. Os enquadramentos cirúrgicos de Estes — como o de uma poça de sangue negro refletindo a ação de policiais corruptos no contraplano a alguns metros — são cerejas num bolo recheado por visões de uma Los Angeles nada feérica, tampouco paradisíaca, apesar das gigantescas palmeiras imperiais em contra-plongeé. Aqui, a Cidade dos Anjos é um lugar de medo, desatino e contendas espirituais sem vencedores.


Filme: Correndo Contra o Tempo
Direção: Jacob Aaron Estes
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Terror
Nota: 8/10