Suspense com Mila Kunis, baseado em um dos livros mais vendidos do mundo, acaba de estrear na Netflix Sabrina Lantos / Netflix

Suspense com Mila Kunis, baseado em um dos livros mais vendidos do mundo, acaba de estrear na Netflix

Todos erramos e não há problema algum nisso. Os tantos inesperados da vida quase sempre nos flagram em circunstâncias de fragilidade, cada qual com o seu peso e a sua medida, em que somos acareados com o melhor e o pior de nós mesmos — e é nessa hora em que vemos o quanto de verdade existe nesta pessoa que nos arrosta todos os dias ao espelho, com a qual esbarramos mil vezes por segundo no retiro soturno de nossos pensamentos mais desconhecidos, mais obscuros, mais vis. Uma abjeção se nos impõe e nos domina, malgrado nunca deixe de haver gente que jure que tal sensação não passe de assaltos de uma mente perturbada a indivíduos emocionalmente prosaicas, incapazes de enxergar a profundidade fundamental que compõe todas as coisas, mormente, por óbvio, as relações humanas. Essas criaturas, perigosas, rondam-nos desde que abrimos os olhos para o mundo, e não veem mal algum em usurpar qualquer patrimônio, material ou não, que venhamos a erigir. Pior: são tão hábeis em todos os assuntos que tanjam a manipular os sentimentos e os desejos alheios que conseguem sem o menor esforço fazer com que os bem-intencionados acreditem que elas têm direito a tudo, que o universo lhes deve desculpas e reparação pelos eventos insustentáveis que fomentaram com seu egoísmo e sua visão de mundo patologicamente maniqueísta, que em pegas num desvio de conduta de alguma importância, na verdade estão sendo vítimas indefesas da inveja diabólica de um fracassado qualquer.

Lamentavelmente, nem sempre tudo é tão simples assim e toda história tem dois lados — ou o correspondente a quantas sejam as partes envolvidas. O diretor Mike Barker exalta o caráter de um mistério que implora por ser revelado em “Uma Garota de Muita Sorte” (2022), o grande predicado do romance de Jessica Knoll, campeão de vendas do “New York Times”. A própria escritora assina o roteiro, colocando na boca de sua protagonista as verdades aniquiladoras que irromperam em sua nova vida e deixaram um rastro de destruição perene. Exatamente como só as verdadeiras tragédias soem fazer.

Ani FaNelli parece estar à beira de um colapso nervoso, e a pena de Knoll logo começa a esclarecer por quê. Ani tem o mundo a seus pés — dinheiro, um noivo que a ama incondicionalmente, perspectivas de trabalho em franca ascensão e, o melhor de tudo, uma autoestima inabalável —, mas ao mesmo tempo suas conquistas nunca apresentam-se-lhe persuasivas o bastante. A roteirista desmonta as aspirações e as desdenha da vida de sua personagem central sem piedade, e Mila Kunis capta direitinho o espírito angustiado dessa mulher. O dinheiro vem do cargo de redatora de um grande jornal de Nova York, em que se estabelece graças ao talento com as palavras, claro, mas também pela habilidade inestimável de adaptar-se a quase toda adversidade profissional valendo-se de artifícios entre o pueril e o doentio, como jamais dizer o que está pensando (e muitas vezes dizer o exato oposto do que lhe vai à cabeça). Barker vai munindo o filme de sequências em que Ani, que chamava-se TifAni até há não muito tempo, demonstra sua insegurança inventando pautas “sérias”, como a disparidade salarial entre homens e mulheres no mesmo posto, inexplicavelmente ameaçada pela evidência de ter se especializado em matérias sobre assuntos menos urgentes, como a relação entre a prática de esportes e o sexo oral. Nesse momento, o diretor enxerga a oportunidade perfeita para jogar o anzol e fisgar o público de vez: Luke Harrison, o candidato a marido interpretado por Finn Wittrock, surge como o amante ideal — doce, compreensivo, bonito e cheio da grana —, mas um tanto alheado quanto ao que almeja a futura mulher. As cenas em que surgem juntos, inicialmente românticas, cedem lugar a uma espécie de competição. Quando Luke menciona a possibilidade de se mudarem para Londres, uma vez que ele recebeu uma proposta de trabalho irrecusável, ela contra-ataca mencionando a oferta que o “New York Times” lhe fizera há pouco — há uma clara publicidade meio desavergonhada do jornal neste ponto, reavivada no segmento final —, que fica em suspenso por todo o restante da trama. Não sem motivo, o enredo deriva miseravelmente aqui, retomando o curso com a entrada em cena de Aaron Wickersham, o documentarista vivido por Dalmar Abuzeid, interessado em averiguar o episódio eivado de segredos que motivou a troca de nome da personagem de Kunis.

Ani se equilibra entre o passado vergonhoso — e Barker faz questão de a todo instante acenar com um possível crime hediondo que a tal garota sortuda teria cometido — e o presente auspicioso, mas pleno de riscos, a começar da muito provável rejeição de Luke, que tem certeza de que sua noiva superou a desdita de um tempo morto. A narrativa avança e retrocede, tirando do armário boa parte dos esqueletos que assombram a protagonista ainda hoje, um filme dentro do filme em que Chiara Aurelia ratifica o bom desempenho de Kunis. A jovem Ani aparece sendo caçada por colegas do ensino médio durante uma festa, até que torna-se mais definida, finalmente, a razão de suas paranoias.

A fortuna de Ani a que o título alude é, sem dúvida, a maneira como lida com as inúmeras autodescobertas que ainda precisava fazer, sem se incomodar com a reação de Luke ou da mãe, Dina, de Connie Britton, que praticamente a leiloara. O desfecho é o melhor possível, ainda que meio farsesco, para uma mulher tão cheia de si.


Filme: Uma Garota de Muita Sorte
Direção: Mike Barker
Ano: 2022
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 8/10