Faça um favor a si mesmo, tire 120 minutos do seu dia para assistir a esse filme encantador que chegou à Netflix Divulgação / Focus Features

Faça um favor a si mesmo, tire 120 minutos do seu dia para assistir a esse filme encantador que chegou à Netflix

Ricos têm preocupações que nunca hão de afligir o resto da pedestre humanidade. Depois de passar tardes inteiras lavando, cortando, tingindo e escovando o cabelo em salões da moda para frequentar convescotes regados a champanhe e caviar osseta onde falam sobre tudo quanto importa, além de assuntos mais frívolos como os perrengues da educação, a segurança negligenciada, a saúde à beira da morte e, já ia me esquecendo, cultura, os aristocratas de Europa, França e Bahia desenvolvem mil e um artifícios para encontrar um pouco de diversão e combater o esplim fundamental da vida. Imagine como não seria no transcorrer do século 18, época em que, por mais absurdo que pareça a fedelhos e pirralhas da geração Z, internet, plataformas de upload e download de vídeos, aplicativos de paquera (ainda se diz “paquera”?) e, por óbvio, as famigeradas redes sociais não passavam de um devaneio que nem os sonhos mais delirantes dos ficcionistas mais rebeldes ousavam sustentar — minto; talvez Philip K. Dick (1928-1982) ou, naturalmente, George Orwell (1903-1950), tenham ido tão longe, sim.

Só por ter conseguido catabolizar uma ínfima parte da realidade que a cercava, Jane Austen (1775-1817) foi um dos maiores gênios de seu tempo. Não exatamente rica, a filha de um presbítero da Igreja Anglicana, a menina retraída de Steventon, vila rural ao norte de Hampshire, sul da Inglaterra, tornou-se uma mulher sofisticada, ainda que bastante sóbria de modos. Muito do fausto dos bailes e da algazarra inconsequente dos tipos que criou durante passeios a cavalo e caçadas primaveris a autora de “Razão e Sensibilidade” (1811), “Orgulho e Preconceito” (1813) e “Persuasão” (1817) foi buscar nas memórias do que viu, não do que viveu. Até hoje surpreendentes ao transpor os anos e reter a atenção de leitores de bagagens as mais variegadas, os clássicos austenianos seguem mesmerizando graças ao inestimável talento de uma mulher que nunca teve medo, nem de polêmica e tampouco das patrulhas ideológicas, e mergulhou fundo ao expor o ridículo da elite abrutalhada de que se nutria, mas que igualmente a devorava.

No caso de “Emma”, há que se fazer as devidas ponderações. Publicado em dezembro de 1815, essa nova crônica não só da vida na Inglaterra pré-vitoriana, como de boa parte do modus pensandi daquele período, o livro dá pano para manga ainda hoje por razões diametralmente opostas. A narrativa, ao enaltecer a leviandade da personagem-título, inspira a cólera de débeis mentais que negam-se a submeter o trabalho de Austen à contextualização necessária e reconhecer o óbvio, qual seja, a história tem mais de dois séculos — e ainda espantosamente atual, contrariando a torcida de certos segmentos, tanto da sociedade como da crítica especializada, que determina o que é verdade ou mentira, o que vale ou não a pena ser dito. Por essas e muitas outras é que “Emma”, vertido para o cinema pelas mãos da americana Autumn de Wilde em 2020 arrebata o público logo às primeiras cenas, por devassar a alma suja de aristocratas sequiosos por encontrar qualquer coisa que cheirasse a sentimento, mas que tolhidos por sua frouxidão moral e sua covardia, raramente deixam as sombras da desventura e da maldade.

O que se tem aqui é mais um exemplo de filme cuja atriz principal termina por empanar o brilho da história, que, conforme já se disse, conserva seu vigor. E difícil imaginar outra intérprete para Emma Woodhouse que não reunisse a picardia, o frescor, a beleza exótica e, por evidente, a competência de Anya Taylor-Joy. Sua absorção da anti-heroína de Austen dá medida exata de como deveria ser uma pós-adolescente feito a donzela sobre quem a escritora se debruça, e De Wilde, faça-se-lhe justiça, reproduz à perfeição o clima ambivalente de ânimo e morbidez, calor e frio, matéria e espírito que emana da história em que seu filme se inspira. Mimada pelo pai, uma grande performance de Bill Nighy, Emma, vai rejeitando uma a uma as propostas de casamento que se lhe despontam, por ser muito rica e não depender de um homem que cedo ou mais cedo vai subjugá-la — conceito mais austeniano, impossível —, mas também (e em especial) por sentir-se inconscientemente opressa pelo amor desse pai, um viúvo misantropo e entrado em anos, ideia que o roteiro de Eleanor Catton, fiel ao original, preserva. Desse primeiro conflito, nascem as trapalhadas de uma Emma que aprende a lidar com os próprios sentimentos e as intenções e fantasias alheias, como as da aia Harriet, vivida por Mia Goth; do viuvinho Robert Martin, de Connor Swindells; e, claro, de George Knightley, uma Emma de calças, personagem de Johnny Flynn.

De Wilde deslinda esse novelo galhardamente, com direito a final feliz para todos, outra marca de Jane Austen, uma bruxa e uma fada que o cinema faz bem em ressuscitar de tempos em tempos.


Filme: Emma
Direção: Autumn de Wilde
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10