Conto gregoriano com nuanças de picardia e de cinismo

Conto gregoriano com nuanças de picardia e de cinismo

Numa modorrenta tarde de domingo, o diabo estava dormindo e a Madre Superiora encontrava-se combalida por reticentes complexos de inferioridade. Jamais tivera amado um homem. Jamais tivera amado uma mulher. No sentido figurado, era apenas mais uma dentre tantas noivas de Cristo. Uma freira cabreira, de olhar contrito, novata nos dilemas existenciais, buscou tento para acudir ao reitor. Pelo fato de ser ele um doutor, haveria de estar mais bem experimentado à dor, ao amor e aos demais cuidados com o andor, pois, o santo era de barro e a vida, nada mais do que uma sucessão de rimas pobres.

— Nem tanto ao cigarro, nem tanto ao pigarro. O meio termo tem sempre um buraco no meio — inferiu o senhor com pompas de magnitude e de superioridade, comprometendo-se a contornar o problema e a tomar as determinadas providências que ela simplesmente não compreendia.

Certas coisas haviam que a ciência não explicava. Ao menos, se supunha que não explicasse. A súbita interjeição da Madre Superiora, por exemplo. Arrebatada pelos ais recorrentes, a religiosa trançara de tal forma o terço ao redor dor punhos que mais parecia uma tentativa nefasta de aprisionar os pensamentos valendo-se da sagrada corrente. Restava o perrengue de que ela se enforcasse com aquilo na trave da sacristia.

Procuraram pelo presbítero, mas, Vossa Reverência tinha partido logo cedo na Kombi da paróquia para buscar mantimentos, doações da comunidade e favores comezinhos de mocinhas da cidade que doavam por bem sem olhar a quem. Além do horizonte existia um lugar bonito e tranquilo para a gente se amar. Aturdida pelos recalques recalcitrantes, a Madre, em estado de surto ou de demência aparente, cantarolava assim, de forma inconsequente, colocando em xeque os compromissos pregressos de não se afeiçoar a ninguém com intenções de esbalde nos recreios das alcovas, muito menos, de esfregar o timão na escova ou de romantizar para além dos rígidos preceitos ecumênicos e dos indefectíveis dogmas do Vaticano.

Tinha gente que punha bondade em tudo e isso era uma coisa boa. O arcebispo, por exemplo. Autoridade máxima da igreja no condado, Vossa Excelentíssima Reverendíssima profetizou que, num dado momento, o coração da pobre Madre Superiora quedaria pacificado pela fadiga ao digladiar contra as mazelas de um passado que não tinha mais volta, quem dirá, um presente ou um futuro. No duro: se um problema não tinha remédio, remediado estava. As clavas fumegantes. As claques hilariantes. Os conclaves entediantes. Tudo. Absolutamente, tudo se prestava a alguma serventia para a evolução de um ser humano. Tudo em seu tempo. Os atrasos de vida. Os remoeres dos fatos. As lamentações pelo que podia ter sido, mas, não foi. Os choros infrutíferos pelo leite derramado.

— Tomai e bebei, todas vós — recomendou o bispo, ao abrir mais uma botija de Sangue de Boi, oferecendo às religiosas tomadas de alvoroço por causa da situação caótica por que passava a líder pontifícia.

As sofrências nocivas da Madre Superiora deixavam as noviças com o cabelo em pé e a moral lá embaixo, coitadinhas. Algumas cogitavam voar para fora do convento, ao sabor do vento, só que, naquele exato momento, a vida não era um filme, muito menos, um seriado de comédia da TV dos anos 1970. Aguentaram mais ou menos firmes um bocado mais de chateação e de provação divina.

Para se fazer de gozado, a fim de provocar o riso e de restituir a autoconfiança das religiosas no que tangia aos rigorosos ditames episcopais e ao celibato compulsório, o arcebispo reuniu as freiras mais velhas, as freiras mais novas e as noviças no largo do auditório para explicar que as tribulações pelas quais passava a Madre Superiora tinham os dias contados e sucediam única exclusivamente por causa dos distúrbios passageiros da menopausa, um fenômeno fisiológico que, lógico, a seu próprio tempo, no apagar das luzes da fertilidade e dos catamênios, mais dia, menos dia, acometeria todas as mulheres do mundo, inclusive, as irmãs ali presentes.

Tal foi o poder de apaziguamento das suaves palavras do arcebispo, que restou combinado entre todos rezar dobrado em prol da Madre Superiora que, por hora, fora pega no contrapé da fé por causas meramente hormonais, orgânicas. O estado emocional da senhorinha encontrava explicação nos inumeráveis sinais e sintomas do climatério. Seria um despautério tergiversar que a religiosa falasse a sério ao mandar o Papa às favas. No seu devido tempo, tudo restaria resolvido, começando pelo agora. Chá de folhas da amora tinha um efeito supimpa, era um produto natural mais efetivo contra os fogachos e os acessos de raiva do que os remédios caros de pompa.

Mandaram uma noviça novata, a mais jovem de todas, catar folhas da amoreira no pomar, sob a anuência do bispo, o líder máximo da congregação no condado, que fitava contente os tornozelos de louça da moça dependurada numa escada. Em dado momento, qualquer coração desatento tropica pelo caminho, quando o viço e a beleza da mocidade em flor atravessam pelo caminho, acendendo, em olvido, o fogo do desejo daquele que estava programado para nunca mais sentir os sentimentos reprimidos.

A Madre Superiora tomou todo o chá, mas, não abriu mão dos comprimidos. A crise nervosa foi controlada e o todo convento pode dormir em paz, com as graças de Nosso Senhor Jesus Cristo. As noivas estavam, novamente, em estado de festa.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.