O filme perturbador na Netflix que você não conseguirá assistir até fim, sem pausas para respirar

O filme perturbador na Netflix que você não conseguirá assistir até fim, sem pausas para respirar

Em meio à normalidade dos mistérios que a alma humana não consegue alcançar, vão aderindo outros, cada vez maiores, como mariscos no casco de um navio. Com o transcurso dos anos, sem os devidos reparos, a embarcação fica pesada demais, mal conseguindo se deslocar pelo oceano, e mesmo zarpar do porto das memórias infelizes vira uma tarefa sobre-humana. Medos aterradores, que paralisam qualquer ímpeto de renovação, degringolam numa pletora de outros infortúnios, até que, finalmente, nos demos conta de que não podemos mais chegar ao coração de nossos próprios desejos, uma vez que estranhas sensações, daquelas que não se experimenta sem que uma sucessão de eventos funestos se anuncie, apoderam-se de nós. De nada vale a renúncia a prazeres, a preocupação com o que se revela mais urgente, as sessões de terapia, as tentativas de expiação de pecados mediante cerimônias de religiões desconhecidas. Enquanto não se ataca de frente o problema que nos mina o espírito, todo o empenho em debelá-lo é insuficiente: é da natureza do homem sabotar-se rejeitando o novo, ainda que para o seu próprio bem.

Viver é concordar, mesmo que tacitamente, com os planos secretos de forças superiores, que muitos não entendem, mas cuja importância todos reconhecem e tentar fazer tábula rasa de uma verdade tão óbvia implica caminhar à beira do abismo que cala a todos e aniquila a mais até a mais forte das criaturas. O mexicano Rigoberto Castañeda se propõe destrinchar ao menos uma pequena parte desses conflitos do homem consigo mesmo em “Km 31” (2006), parábola em que mostra a seu público o poder indevido que as coisas do além-mundo adquirem se nos descuidamos do que temos de mais precioso. Já no prólogo, o roteiro de Castañeda deixa claro que se vai falar de uma personagem que está perdendo o domínio de si mesma. A fotografia de Alejandro Martínez preza pelos tons perturbadoramente sombrios, do princípio ao fim, fazendo recrudescer a sensação de desorientação, tanto da protagonista como do espectador. Bastam uns poucos minutos para que tudo se perca de vez no crescendo de terror que avulta sem muito controle, uma decisão estética difícil, mas acertada.

Um episódio que encerra os segredos que gradualmente pontuam a narrativa de Castañeda resulta no acidente que leva ao coma de Ágata, uma das gêmeas a que Iliana Fox dá vida. Catalina, a outra irmã, padece da agonia de Ágata, e a partir desse argumento o diretor se esmera por fazer com que a audiência tenha ao menos uma noção da história caudalosa, plena de reviravoltas, que será contada. O estado da irmã hospitalizada torna-se mais grave, e lhe amputam as duas pernas. Catalina é capaz de ouvir os gritos de dor e tormento, o que a motiva a acordá-la e levá-la para casa. Contando com a ajuda de seu namorado, Omar, vivido por Raúl Méndez, e Nuño, o amigo de Ágata, papel de Adrià Collado, Catalina liberta a irmã do que considera uma prisão, malgrado sinta que Ágata está prestes a embarcar no misto de delírio e realidade que passará a marcar sua vida, desdobramento da maldição que lhe rogou a entidade diabólica com que cruzara no limite entre o plano físico e o sobrenatural quando do acidente.

Nesse momento, Castañeda inclui no enredo os elementos assumidamente fantásticos que tornam seu filme algo tão sui generis. A anciã que visita em sonho a personagem central, desempenho com a intensidade precisa de horror e carga dramática de Luisa Huertas, remete à lenda da Chorona, a mulher que reclama o filho, morto inexplicavelmente ainda criança. A aura de terror que até então só pairava sobre a história desce de vez, quando se depreende que nenhum dos quatro poderá desfrutar de alguma paz, assombrado por espíritos diabólicos, vindos do inferno e mandados pelo próprio mal encarnado, uma mensagem que diz nas entrelinhas que, por pior que seja, o sofrimento da carne pode ser muito pouco se abrigado por uma alma sob tortura. Nem tudo nos pesadelos é só o represamento das infinitas desgraças do homem.


Filme: Km 31
Direção: Rigoberto Castañeda
Ano: 2006
Gênero: Terror/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.