Novo filme da Netflix foi feito sob medida para quem acredita em milagres e quer deixar a semana mais leve Sanja Bucko / Netflix

Novo filme da Netflix foi feito sob medida para quem acredita em milagres e quer deixar a semana mais leve

Todos nos deparamos com atravancos ao longo da vida, mas transpô-los não é para qualquer um. Os momentos tão íntimos de dor, de solidão, de martírio de cada homem durante sua breve passagem pelo mundo fazem-no mais senhor de si, mais conhecedor de sua própria alma e da força invencível que nela existe. Residem no espírito humano boa parte dos segredos que compõem o mistério maior que é viver, e quanto mais se vive, mais se constata que menos se sabe. Vamos fazemos nossas descobertas, eliminando as falsas verdades, descartando as mentiras, esperando que desse saldo reste alguma coisa de proveitoso. A natureza nos ajuda da maneira que considera mais adequada, ofertando a cada indivíduo o dom com que pode se destacar sobre os outros, passar por cima de suas inquietações, buscar a felicidade a que pensa ter direito. Valemo-mos dessas ajudinhas do destino para conseguir vencer as angústias com que os dias nos testam, aspirando à fortuna com sonhamos desde o instante em que nos reconhecemos parte, ainda que quase insignificante, do universo. Mas sempre falta um pedaço.

Até onde o talento pode ser o bastante quanto a fazer de alguém uma pessoa verdadeiramente extraordinária? Essa é uma das perguntas que o britânico Eddie Sternberg tenta responder em “Já Fui Famoso” (2022), enredo leve, mas relevante, sobre um prodígio de outro tempo à procura de uma segunda chance, e um tesouro da nova geração, escondido em meio ao ouropel do mundo. Sternberg fala dos sonhos frustrados e dos que hão de nascer, impressões que seu roteiro, escrupulosamente trabalhado na sintonia fina com Zak Klein, materializa no trabalho de seus protagonistas, afinados entre si e atentos à história que o filme pretende contar. Se um parece cansado da vida, porque farto de colecionar derrotas, o outro, a própria encarnação da inocência, lhe serve de estímulo, mesmo que nem saiba. A maneira como o diretor conduz esse suposta dicotomia é o que captura o interesse do público sem qualquer dificuldade, o que faz com que o filme vibre num diapasão pouco comum, cuja frequência oscila de forte para mais forte.

Sternberg lançara “Já Fui Famoso” em 2015, como curta, e o filme de 2022 é o desdobramento de uma história muito bem-parada no decorrer de vigorosos 105 minutos. O jardim de Vincent Denham já deu flor, mas hoje ele tem de lidar é com as ervas daninhas que o atormentam há duas décadas. Vince, o Vinnie D, é o ex-vocalista de uma boy band interpretado por Ed Skrein que tenta administrar a mágoa de um ostracismo forçado, condição natural de 99,9% dos astros juvenis do começo dos anos 2000. Personificando tudo o que pode existir de mais nefasto na indústria do espetáculo, a lembrança do velho Vinnie erra por Peckham, distrito ao sul de Londres, quase mendigando por uma oportunidade, que lhe é negada, e não sem boa dose de razão. Obsoleto, precocemente marcado pelos anos de batalhas perdidas e sem conseguir ajustar-se às novas demandas do showbiz — a começar por gerar engajamento em plataformas de compartilhamento de músicas e vídeos, além das famigeradas redes sociais, especialmente nefastas para um artista old school —, em alguns momentos o personagem de Skrein parece querer desistir, mas talvez movido por algum sentimento além da mera intuição, persevera. Entre um e outro não, se recolhe no meio de uma feira na esperança de tirar um som, desejando ser notado, claro. Tudo o que consegue é chamar a atenção de uma hater, mas nem tudo seria motivo para drama: Stevie, o adolescente autista que desenvolveu uma rara aptidão com as baquetas, chega em seu socorro.

O desempenho comovente de Leo Long, portador de uma dislexia de aprendizado na vida real, garante a energia do filme em diversas passagens, e logo se estabelece a química entre Stevie e o tarimbado e exausto Vinnie. A história não se livra de todo dos muitos clichês — com espaço para Amber, a mãe superprotetora do garoto, de Eleanor Matsuura —, e talvez tenha sido essa a intenção de Sternberg, mas o carisma de Skrein e Long compensam qualquer deslize narrativo. “Já Fui Famoso” é um filme de um tema específico, mas que abrange assuntos muito mais diversos.


Filme: Já Fui Famoso
Direção: Eddie Sternberg
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama/Musical
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.