Todos temos limites, mas a vida muitas vezes nos impõe circunstâncias em que simplesmente não conseguimos determinar com a devida exatidão até onde podemos chegar. O gênero humano nunca valeu grande coisa para muitos, percepção que se agudiza ainda em tempos de situações extremas como os que temos vivido. Os tantos inventos revolucionários que já tomaram forma pelas mãos do homem; a evolução na ciência, na medicina, nas artes e na comunicação; a maneira como fomos nos tornando cada vez menos dependentes das conjunturas que nos apresenta a natureza; nada disso foi capaz de aplacar a fera sem controle que habita a alma humana desde o princípio dos tempos, satisfeita temporariamente à medida que subjuga outros infelizes, os que têm menos, os que ousam discordar, os que se atrevem a investir contra o consenso e ser pensar diferente da maioria. E mesmo entre a minoria há os que acreditam ser legítimo lançar-se sobre os demais porque descontentes com a forma como se põem no mundo. Tudo vira uma questão de vida e morte, pautada pela fé — pela ideia deturpada, viciada, torta que alguns têm de fé — cujo fundo toca o chão da loucura, terreno arenoso onde brotam somente males indizíveis.
Reed Morano não chega a explorar todas as incontáveis possibilidades de se deslindar a razão mais forte que pode existir para explicar uma das piores deformações do homem, mas seu “O Ritmo da Vingança” (2020) é muito eficaz quanto a sugerir os diferentes tipos de gente e, por óbvio, o jeito no mínimo caótico como alguns lidam com suas tragédias pessoais. Há quem se cale para sempre, anestesiado como se para morrer, incapaz de reagir, subitamente de sua força vital, aquele manancial sem par de energia e vigor que sustenta o espírito e a carne do homem nos momentos em que a própria vida se lhe desaba à cabeça; existem aqueles que observam um período em que vivem seu luto com toda a dignidade e circunspecção, chorando e sofrendo tudo o que podem, caoticamente, para voltarem como uma fênix, das cinzas, nutridos pela ilusão da imortalidade; e tem os que só passam por cima dos próprios sentimentos, emendam um e outra dessas partes, sem conseguir levantar-se de todo, claudicando como um bicho ferido à beira de uma longa estrada, mas atento à menor chance de empreender o revide que lhes de devolver o gosto por viver. É o caso da protagonista desta história.
O roteiro de Mark Burnell transforma Blake Lively numa mulher um tanto repulsiva, o que Jaume Collet-Serra já havia conseguido no tenso “Águas Rasas” (2016), em que Lively escapa da morte lutando contra um inimigo que nao tem receio algum de se mostrar. Aqui, sua Stephanie Patrick está a um oceano de distância do glamour que o nome da estrela sugere, transformação física inarredável quanto a se passar a ideia da solidão, do desalento e sobretudo do medo aterrador que Stephanie vivencia desde perdeu a família no que sempre acreditou ter sido um acidente aéreo. Lively dá a Stephanie o ar de inconstância tão comum nessas pessoas, aquela passividade que ao mesmo que as idiotiza também guarda o vigor de que irão se valer na hora certa para dar a volta por cima. E esse chega momento sempre chega para mulheres como ela.
A vida como prostituta é como o castigo que se autoinflige depois da grande desdita de sua existência, uma versão feminina do Frank Valera de Antonio Banderas em “Acts of Vengeance” (2017), de Isaac Florentine, e é precisamente nesse meio de perdição que encontra a maneira de se redimir com seu passado e tornar à vida, antes vencendo a apatia que a parasitava e travando um contato para além do profissional com os tantos homens que se infiltram no enredo em que Lively é a única pessoa que importa, crescendo mais que a própria trama. Jude Law e Sterling K. Brown entram na história como machos-alfa eminentemente tóxicos (e enganosos), mas essa é a alcateia de uma loba solitária e vitoriosa, como explicita o desfecho.
Filme: O Ritmo da Vingança
Direção: Reed Morano
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10