A comédia mais aguardada de 2022, com Camila Mendes e Maya Hawke, acaba de estrear na Netflix Kim Simms / Netflix

A comédia mais aguardada de 2022, com Camila Mendes e Maya Hawke, acaba de estrear na Netflix

Ao longo da vida, muitas variáveis influenciam quanto a moldar o caráter de alguém. A relação com os pais, os responsáveis por apresentar aquele indivíduo ainda em formação a toda maravilha e desventura do mundo, certamente é o fator a contar primeiro no que virá a se tornar genuinamente uma pessoa, imperfeita, por óbvio, mas a depender de como seja educada, munida de muito mais condições para superar os obstáculos — boa parte deles inventados por si mesma, sabemos todos os que fomos jovens — e vencer, sem qualquer necessidade de passar por cima das suscetibilidades e das vergonhas alheias, invisíveis aos nossos olhos. A dureza da vida real nos vai mostrando que estar no mundo não é exatamente o mar de rosas que pensávamos quando nossos domínios ainda se resumiam à casa paterna e ao convívio com duas dezenas de amigos, apenas dois ou três de fato dignos do nome, e justamente esse sentimento faz recrudescer em nós a impressão, equivocada, de que o universo nos deve. Ser feliz implica uma série de experiências infaustas que, só depois de muitos anos, entendemos, à luz das geniais elucubrações de Nietzsche, que, se não nos mataram, serviram precisamente para que chegássemos até aqui.

O infausto da vida — que não raro degringola no seu trágico, mas sempre esbarra no seu ridículo —, estado que permeia toda criatura desde o berço e se agudiza barbaramente entre os treze e os dezenove anos, é apresentado sob notas rosicleres no folheteen “Justiceiras” (2022), de Jennifer Kaytin Robinson, em que a diretora fala de uma das catástrofes de se amadurecer, mormente em tempos competitivos e nada felizes. Robinson não tem pejo de reproduzir tantos dos lugares-comuns já vistos incontáveis vezes em produções do gênero, talvez por saber conduzir com desenvoltura a sucessão de reviravoltas do roteiro escrito com Celeste Ballard — o que deixa a história meio cansativa e um tanto extensa além da conta, aliás. É visível o esforço da diretora quanto a driblar esses possíveis impedimentos, o que consegue com alguma facilidade, ajudada, por evidente, pela naturalidade de seu elenco. “Justiceiras” é um filme de adolescentes, com tudo de bom e ruim que tal atributo implica.

Robinson mescla as irrequietudes do público que deseja atingir com seu filme a blagues assumidamente datadas, que a geração Z não capta, mas de que quarentões que se deparam com a trama por a uma eventualidade qualquer decerto hão de achar muita graça. Não por acaso um ícone de garotos e garotas que cresceram ao longo dos anos 1990 trata de fazer as honras logo de cara: Sarah Michelle Gellar, a diretora do colégio que serve de cenário à história, ressurge quase irreconhecível a uma apreciação mais ligeira — quase pensei que se tratasse de Toni Collette, o que me faz ter calafrios quanto ao que o espelho deixa para que só os outros vejam sobre minha própria aparência —, passando uma carraspana em Drea Torres, a garota latina e remediada vivida pela graciosa Camila Mendes. Pouco antes, o enredo mostrara sua personagem numa festa dada por Max Brossard, o namorado janota e milionário interpretado por Austin Abrams, uma grata surpresa no clímax, já perto da conclusão. Drea fora chamada à diretoria por causa da maneira “pouco civilizada” como reagira a uma situação bastante constrangedora e tragicamente cada vez mais comum em tempos de celulares e redes sociais ubíquos. A aluna é mandada a um acampamento, à guisa de exílio, a fim de se emendar, momento que se abre à entrada em cena de Eleanor, a personificação do caos encarnada por Maya Hawke, que atendia pelo nome que aterrorizou Drea num passado recente (e foi por ela infernizada com igual fúria também).

Se o propósito de Robinson era emular o espírito do nosso tempo e catalisar discussões sobre como é ser adolescente em meio à insânia do mundo cibernético, menos e menos paralelo, ela pode considerar-se gloriosamente vitoriosa. Passam-se milhões de coisas ao mesmo tempo em “Justiceiras”, subtramas que, inclusive, engolfam a obviedade da vingança por trolagens e episódios de bullying tipicíssimos de certa fase da vida, até saudáveis, como sabemos os que cresceram entre as décadas de 1980 e 1990 — o que passa disso é crime e, como tal, deve receber a devida atenção da polícia —, e imagino que só mesmo os filhos da pós-geração Coca-Cola (que gostam mesmo é de gim, vodca com energético e outras coisinhas) tenham por elas algum interesse. Eu, de minha parte, gostei foi de rever Gellar e identificar no encerramento a descarada homenagem a “Segundas Intenções” (1999), o drama-meio-thriller meio-qualquer outra coisa de Roger Kumble, por seu turno baseado no novelão do francês Choderlos de Laclos (1741-1803). Não tem jeito: no século 18 ou daqui a mil anos, jovens hão de ser sempre criaturas adoravelmente instáveis, clamando por socorro num grito abafado. Repito o conselho de Nelson Rodrigues (1912-1980) e lhes recomendo que envelheçam, rápido. O já saudoso Godard ajuda nisso.


Filme: Justiceiras
Direção: Jennifer Kaytin Robinson
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Romance 
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.