O filme de Jean-Luc Godard que todas as pessoas deveriam assistir, gratuito na NetMovies

O filme de Jean-Luc Godard que todas as pessoas deveriam assistir, gratuito na NetMovies

Quando alguém como Jean-Luc Godard (1930-2022) morre — e da forma como ele morreu —, viver passa a fazer ainda menos sentido. Godard passou a vida tentando a todo custo fugir dos estereótipos, limitantes para qualquer pessoa, e tanto pior quando se é um artista do seu gabarito, ousado, que fazia questão de experimentar, de testar as diversas possibilidades de sua arte, a coisa que sabia fazer de melhor. Sei duas ou três coisas de Godard, e todas me remetem a mim mesmo, ao garoto esquisito que sempre fora, capaz tanto de declinar de convescotes idílicos regados a bebedeiras homéricas no Parque da Cidade como de matar as aulas do cursinho pré-vestibular que meus pais pagavam com algum sacrifício para me encafuar no deserto sem fim de breu e ácaros do Cine Brasília, das duas da tarde às dez da noite, assistindo a todas as maravilhas infernais que um abnegado funcionário punha para rodar num projetor mais velho que os irmãos Lumière. Foi ali, quase sempre só com meus fantasmas, ávido por entendê-los — e dessa forma entender-me também —, que fui apresentado àquele homem cuja fisionomia algo obscura só fui desvendar anos depois, não sem certa dose de espanto.

Godard já era um homem velho, quiçá meio alquebrado pelo tempo, no começo do século 20, duas décadas atrás. Eu, esse corpo estranho numa civilização que nunca fizera muita questão de mim, bicho dos meus pensamentos, ancião encarcerado numa massa de carne tenra, só me gostava quando ninguém me via — e rigorosamente ninguém me via nas matinês prolongadas do Cine Brasília, nem Jules, nem Jim, nem as duas inglesas e muito menos o amor. Admito: Truffaut fora por muitos anos o meu ideal de homem de cinema, e pensei que ele seria meu ídolo maior para sempre. Nossas primeiras memórias, além de moldarem nosso caráter, nos servem de norte; com base nelas é que decidimos para onde vamos e com quem, por mais que para alguns custe reconhecer que critério tão frio, quase cartesiano, determine o modo como iremos conduzir nossos afetos. Fui fiel a Truffaut num casamento intelectual monogâmico e metafísico, uma vez que o mestre da Nouvelle Vague morrera havia quase vinte anos, ainda moço, quando eu acabara de completar dois anos e dois meses de idade, até que para mim passou a haver Godard. Já não era sem tempo.

O romantismo torto de Truffaut foi um bom mestre de cerimônia para a misantropia assumida de Godard, talvez o melhor. A obra do primeiro não existiria (nem resistiria) sem as interpretações um tanto idiossincrásicas demais do segundo acerca de tudo quanto diz respeito ao gênero humano, mas principalmente àquilo que sempre importou tão pouco — e tem significado cada vez menos. Artistas podem defender as opiniões que quiserem, sobre tudo o que julgarem relevante, mas a matéria-prima que alguém que se pretende um trabalhador do belo tem de buscar mesmo são os humanos sentimentos, mormente os mais escondidos, os mais envergonhados, os declaradamente secretos. Continuei a amar Truffaut pela vida afora, mas passei a ter de dividir meu escalavrado coração por dois, e por cada vez mais, conforme ia me deparando com os novos magos capazes de seduzir e derreter meu espírito de ferro.

Travei meu primeiro contato com a produção de Godard graças a “Acossado” (1960), e para chegar a “Carmen de Godard” a estrada foi longa. Interessei-me por muitos outros trabalhos godardianos até topar com a história da terrorista apaixonada por um policial que complementa seu salário com biscates de segurança num banco. Só nessa primeiríssima mirada já surge uma pletora de possíveis comentários e interpretações, mais ou menos enviesadas à direita e à esquerda, que o roteiro de Godard e sua última mulher, Anne-Marie Miéville, fazem questão de ora enaltecer, ora ignorar, jogando água no moinho da polêmica — uma das grandes especialidades do mestre — com as cenas de nudez e sexo explícito protagonizadas pela personagem-título da holandesa Maruschka Detmers e Joseph, vivido pelo excelente Jacques Bonnaffé. Contava o ano da graça de 1983, e esses diversionismos marqueteiros de Godard ainda despertavam a ira despeitada de censores embrionários, sobretudo em dados países jecas da América do Sul, como tornou a acontecer com ímpeto redobrado dois anos depois, em 1985, quando da estreia de “Je Vous Salue, Marie”, imediatamente embargada por certo presidente casual, filhote da ditadura recém-encerrada por aquelas bandas e pelo visto saudoso do brucutu e do pau-de-arara. Decerto o que devia acirrar ainda mais os ânimos dos donos dos podres poderes no que respeita a Godard era essa sua capacidade de dar uma banana ao cânone. Para ele pouco importava se o enredo aludia à ópera centenária de Georges Bizet (1838-1975) ou às Sagradas Escrituras; o cineasta mais genuinamente controverso do século 20 nunca se furtou a dizer o que lhe vinha à cabeça, acatando à rara intuição de vituperador que lhe dizia intimamente o que compensava ou não ser remexido, sabendo, por óbvio das possíveis consequências. E isso o divertia.

Jean-Luc Godard foi se cansando do mundo, da vida, de si mesmo, até optar pelo ostracismo gradual e pelo suicídio assistido na Suíça de sua juventude, em 13 de setembro de 2022, aos 91 anos. Que Deus tenha piedade de sua alma rebelde e singular, e entenda que ele entregou-se à morte da forma como passou a vida: afrontando tudo e todos.


Filme: Carmen de Godard
Direção: Jean-Luc Godard
Ano: 1983
Gêneros: Drama/Romance
Onde assistir: NetMovies
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.