No decorrer de sua trajetória, o ser humano fica cada vez mais desolado com que se passa no mundo, um lugar a que chega sem convite e sem que lhe consultem, sofre decepções, é desacreditado, se acovarda. Cruza mares, aprendeu a voar sobre eles, faz novas conquistas, mas não tem o condão de se dominar a si mesmo. Vacila, grita, chora. Quanto dos oceanos não será a enxurrada de lágrimas derramadas de saudade, de frêmito, de dor — e de júbilo, de gozo e de amor? Nada do que é humano é estranho à Bula e, sendo assim, preparamos aquela listinha com dez filmes plenos de tudo o que alma tem (de pior e de melhor também, claro!, até porque tudo o que molesta sempre passa, e ainda serve para deixar o couro mais grosso, né?). No cardápio de hoje, histórias com um molho que sabe ora a suspense, ora a romance, salpicadas de alguma psicodelia. Os títulos, todos na Netflix, obedecem apenas a uma ordem cronológica, inversa, se quiserem, do lançado a menos tempo para o mais antigo, e cabe só a você decidir qual o melhor. Se o corpo precisa de alimento, cuidado, remédio, cura, a pobre alma do homem os demanda com veemência ainda maior. Submerja para o mais fundo de você, volte à superfície e retome o ar.
Quem gostou de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” vai aprovar o filme de Charlie Kaufman, adaptação do romance de estreia do escritor canadense Iain Reid sobre uma mulher que depois de seis ou sete semanas quer terminar o relacionamento, mas mesmo assim aceita viajar para conhecer a fazenda dos pais do namorado, o que vai fazê-la repensar muitas coisas. Ao longo do deslocamento, a protagonista se percebe tomada por um fluxo de pensamentos monomaníacos que incluem, sim, romper com o parceiro, mas sugerem também mudanças muito mais profundas. Ao chegar à propriedade e conhecer o estranho casal, ela acaba sem saber muito bem onde está pisando nem o que deseja na verdade.
Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.
“Rede de Ódio” já impacta pelo nome. Certamente não foi por acaso que optou-se por traduzir com essa expressão o título da produção polonesa, “The Hater” no original, ou “o que odia”. O filme de Jan Komasa deve muito de sua genialidade ao personagem principal, mas ampara-se, por óbvio, no contexto histórico em que está inserido e da época em que vivemos, no Brasil, sobretudo. O uso deturpado da inteligência artificial — cada vez mais inteligente, ao passo que o homem, por sua vez, parece emburrecer a olhos vistos — fomenta a discussão sobre em que medida um indivíduo agressivo pode se dizer afetado pela toxicidade da internet ou se sua truculência é fruto de sua própria natureza patológica. Komasa explora essa dicotomia — logo resolvida, em face da superioridade da segunda hipótese — à luz de Tomasz, que sai do interior da Polônia para a capital Varsóvia a fim de estudar direito, graças à generosidade de familiares distantes. O rapaz não é simplesmente ambicioso, e a perspicácia do diretor aliada ao talento soberbo de Maciej Musialowicz, desde sempre deixam muito claro que está ali um sociopata que, como quase sempre sói acontecer, é um sujeito cuja capacidade intelectual supera a de quem o rodeia. Ele se vale das facilidades que as redes sociais proporcionam para levar a termo os objetivos que busca alcançar, sem poupar quem quer que seja. Não se deve deixar passar nada ao longo das 2h15 de duração da trama, que oferece uma mensagem edificante, sem ser — ou parecer — moralista. Há que se estar sempre atento para os Tomasz que nos apresenta a vida.
Em “Tempo Compartilhado”, dois homens unem forças para resgatar seus familiares de um lugar paradisíaco quando ficam convencidos de que um conglomerado americano quer expulsá-los dali. A todo momento, a trama se equilibra entre a crítica acerba à indústria de sonhos artificiais — consumidos sob a forma de férias perfeitas por uma sociedade hedonista, ávida por prazer a qualquer custo — e a sutil comicidade das situações que cada plot insinua. Neste terror nada convencional, a ação sucede à luz do surrealismo, ou feito uma comédia bizarra, que provoca risos involuntários. Uma história nada óbvia sobre personagens nada comuns que consegue manter o espectador interessado até o desfecho.
Um filme de ficção científica assumidamente feminista. “Advantageous”, da diretora sino-americana Jennifer Phang, não se alinha em nada a quase tudo o que já se produziu em matéria de histórias cujo mote central é a vida — e a sobrevida — num mundo em que ser bonito e jovem conta muito na trajetória de alguém, e não só no que diz respeito a carreira, que se frise. Numa narrativa toda pontuada por tipos femininos, Gwen, a protagonista, é uma mulher de quarenta e poucos anos, veterana na indústria farmacêutica. Ela é representante de um laboratório de biomedicina, ou melhor, era, e essa é justamente a reviravolta fulcral aqui: tudo orbita ao redor da demissão de Gwen e seu desespero, não por ela, mas pela filha — mais uma mulher no coração do enredo. Ela se vira para achar alguma outra forma digna de ganhar a vida o quanto antes, a fim de não permitir que a garota passe qualquer dificuldade ou tenha de se submeter a condições degradantes de vida, como se prostituir ou casar-se prematuramente. E as coisas ficam um tanto piores para Gwen, por causa do cenário de recessão econômica em que o mundo está atolado. Por tudo isso, pode se dizer que “Advantageous” é, de fato, uma vantagem.