A fé é o único jeito de se atravessar o tempo. Acreditar seja no que for — de preferência em algo que dê em boas condutas, bons resultados, na plenitude das intenções, na salvação, enfim — é o que faz com que o homem consiga rejeitar sua natureza moldada pela destruição e preze por buscar se redimir, para começo, e a partir dessa libertação de velhos e péssimos hábitos estar apto a ser uma nova criatura. À medida que vivemos, descobrimos, uns mais arduamente que outros, que temos todos o poder de deixar o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e retomar o percurso, do início, se necessário. Há as ocasiões em que se levantam fatos que nos forçam a largar tudo, abandonar a vida que levávamos até determinado ponto de nossa jornada e acessar o mais obscuro de nosso espírito, no intuito de absorver o cenário em que estamos nos aprisionando e, assim, verdadeiramente, mudar. A estrada para a perdição é larga, porém tenebrosa; uma vez que o homem envereda por essa trilha nefanda da existência, vão se anunciando mil outros desvios que, por mais retos que se apresentem, conduzem-no à desventura e quiçá à irreparável morte. Também para que se reduzam as chances de que tal ocorra é que existe a religião.
Doutrinas religiosas de todas as matrizes foram surgindo em todos os rincões do planeta, da Judeia, uma área montanhosa ao sul de Israel, ao Japão, passando pela Índia, pela península arábica, pelas florestas do Brasil profundo e, claro, pela África, todas com a precípua intenção até etimológica de restabelecer o vínculo do gênero humano com o transcendente. Essas últimas, as práticas religiosas oriundas da África, se disseminaram para muito além dos domínios do continente, gerando interpretações equivocadas e um preconceito tão tolo quanto inadmissível. Em países da América Central, como o Haiti, por exemplo, rituais de magia negra que, de acordo com seus adeptos, seriam capazes de fazer os mortos voltarem à vida, são uma triste realidade. O vudu se popularizou tanto que começou a ofuscar o lado digno da religiosidade haitiana, fomentando a ignorância, dando azo a reações intolerantes e acendendo a fogueira do ódio.
Iain Softley aborda um dos muitos aspectos da prática religiosa em “A Chave Mestra” (2005), trabalho em que esgrima temas polêmicos sem prejuízo do bom cinema. De imediato, o diretor consegue a proeza de desmistificar consensos que se foram arrastando com o passar dos anos, à revelia da verdade. Tal como em toda fundamentação religiosa, nas crenças de matriz africana também acontecem subversões do princípio central daquelas manifestações. Softley faz questão de esclarecer possíveis mal-entendidos e pôr as coisas nos seus lugares. O vodu, ajuntamento de rituais em louvor ao espírito de pessoas queridas, não deve ser confundido com hudu, este, sim, relacionado à baixa feitiçaria. Muito antes que se embrenhe por sendas tão ingratas, o roteiro de Ehren Kruger apresenta Caroline, a enfermeira desiludida com a profissão vivida por Kate Hudson. Cansada de ter de compactuar, ainda que indiretamente, com a frieza dos outros funcionários do asilo em que trabalha, a mocinha de Hudson resolve se demitir, ainda elaborando a morte de um paciente. Encontra a chance de um novo emprego e de refazer a vida na Louisiana, sudeste dos Estados Unidos, na mansão de Violet e Bem Devereaux, o mórbido casal de Gena Rowlands e John Hurt (1940-2017).
A chegada de Caroline à casa dos Devereaux marca o segundo ato da trama, a partir do qual Softley vai mais fundo no argumento do sobrenatural. Violet detém a tal chave mestra do título, frisando que com ela pode abrir todas as portas, menos a do porão. Algum tempo depois, a enfermeira, contratada por Violet para assistir ao marido da personagem de Rowlands, incapacitado depois de um derrame, descobre que Ben estava justamente no subsolo quando sofreu o ataque, que o calou e o imobilizou de maneira radical. Nesse ponto, começam a despontar os elementos que irão levar ao esclarecimento do mistério, quando Violet e Caroline invertem seus papéis.
Rowlands foi feita para interpretar tipos como Violet. É impressionante como a atriz consegue extrair tanto material de algo aparentemente tão prosaico e criar uma personagem tão frágil e tão rica, como já fizera em “Uma Mulher Sob Influência” (1974), dirigida pelo marido, John Cassavetes (1929-1989), a ponto de melhorar o desempenho de Hudson e ofuscar os demais colegas. “A Chave Mestra” é um daqueles filmes de virada, com a licença do trocadilho, em que o talento de uma só intérprete sustenta tudo.
Filme: A Chave Mestra
Direção: Iain Softley
Ano: 2005
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10