A justiça deveria mesmo ser cega, como diz dela a voz rouca das ruas, e avaliar a postura de um homem pelo modo como escolher se conduzir em meio aos outros homens, não pela cor de sua pele, sua condição social, as relações de influência que tem a capacidade de urdir ou o quão útil poderia se tornar para esse sistema apodrecido em troca de futuras vantagens, para um e outro lado. Foi essa visão tão seletiva do aparelho jurídico que gerou excrescências como a que tem no Brasil hoje. A população carcerária brasileira está prestes a alcançar a triste marca de 700 mil detentos — quando a capacidade máxima é estimada em pouco mais de 440 mil, o que evidencia uma sobrecarga de quase 63%. Desses, cerca de 62% são pretos ou pardos, isto é, aproximadamente 450 mil presidiários têm essa característica genotípica. É como se cadeia no Brasil tivesse mesmo sido feita para o homem de cor, como se dizia noutros tempos, e os brancos estivessem lá de intrometidos, até nisso lhes tomando o lugar… No caso dos Estados Unidos, o que se observa é ainda mais acintoso. Os custodiados pelo Estado na América passam dos dois milhões, universo composto por 66% de negros. Seria estimulante saber quantos desses indivíduos receberam assistência jurídica adequada, visto a ampla defesa ser um preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, originalmente publicada em 1948 e filha da Revolução Francesa, movimento humanista responsável pela extinção dos descarados privilégios da aristocracia que acabou culminando também na debacle do Antigo Regime, a monarquia absolutista de Luís 16 (1754-1793), o último rei da França e Navarra, executado no ano seguinte. A sede por profundas transformações de um estamento ideológico arcaico, disfuncional, injusto, cínico e perverso por natureza — essência de todos os governos monárquicos, em qualquer parte do globo, a qualquer tempo —, espalhou-se pelo mundo entre 1789 e 1799. O documentário “A 13ª Emenda” (2016), dirigido por Ava DuVernay, ajuda o público leigo a entender e se familiarizar com detalhes do ordenamento jurídico americano, segundo DuVernay, intencionalmente falho e propenso a atormentar e incriminar cidadãos pobres, e, naquele caso, pretos.
“Fuga de Alcatraz” tem um único personagem afrodescendente de algum destaque, o que confirma algumas teses expostas acima. Há que se levar em conta, entretanto, que os tempos eram outros: Don Siegel (1912-1991) lançou o filme, um de seus trabalhos que mais perduram no inconsciente coletivo em 1979, há inatingíveis 43 anos, aproveitando-se do sucesso de um ator que se tornaria o nome sobre todo nome do cinema americano no século 21. Clint Eastwood faz de Frank Morris um dos grandes personagens da história do cinema. O protagonista de um dos melhores trabalhos de Siegel é, aparentemente, um homem acima de qualquer suspeita, que como muitos outros que levaram uma vida como a sua, foi parar no meio da Baía de São Francisco. Era 18 de janeiro de 1960, a noite já havia caído e chovia. Condenado por roubo, assalto à mão armada e furto, Frank está prestes a ter de renunciar ao resto de uma existência infeliz, tornada ainda mais curta e ainda mais desditosa desde o momento em que soube que seu próximo destino seria Alcatraz, a penitenciária federal de segurança máxima encravada num maciço de rocha no meio do Pacífico.
O roteiro de Richard Tuggle reproduz a história verídica da empreitada de Frank — imortalizada primeiro em “Escape from Alcatraz: The True Crime Classic” (1963; sem edição em português), a biografia romanceada escrita por J. Campbell Bruce (1906-1996) —, responsável por arquitetar um dos planos mais engenhosos já registrados pela crônica policial. Contando com a ajuda dos irmãos Clarence e John Anglin, de Jack Thibeau e Fred Ward (1942-2022), o personagem de Eastwood pôde colocar em marcha o que Siegel dá a dimensão justa de uma verdadeira odisseia, que da mesma forma que o clássico de Homero (928 a.C. – 898 a.C.), também se esmera por detalhar cada etapa do desafio que os três foram obrigados a vencer a fim de recobrar a liberdade, ainda que de um jeito torto. Tuggle menciona lances curiosos, da confecção de cabeças de gesso, recobertas por mechas de cabelo da barbearia onde Clarence trabalhava para tapear os guardas, à montagem de uma embarcação rudimentar, feita de capas de chuva da oficina de costura e blocos de madeira das aulas de carpintaria, usada para navegar os dois quilômetros que separam a Rocha do continente. À época, acreditava-se que seria impossível transpor esse percurso a nado; hoje, não só sabe-se que a façanha é viável como amplamente reportada por equipes de televisão quando dos torneios de triatlo.
Siegel elabora sequências em que se pode conferir o bom desempenho dos tipos marginais com que Frank passa a conviver, entre os quais Wolf, o homossexual valentão de Bruce M. Fischer (1936-2018); Doutor, vivido por Roberts Blossom (1924-2011), o esquizofrênico que passa a pintar retratos para lidar com a agonia de saber-se encerrado para sempre na ilha; e o bibliotecário Inglês, participação marcante de Paul Benjamin (1938-2019) ao mostrar um negro culto e destemido em igual medida.
Filme: Fuga de Alcatraz
Direção: Don Siegel
Ano: 1979
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10