Sem exagero, pode-se afirmar que é a partir da filosofia que o homem chega a todos os ramos do saber. Decisiva a fim de que entendamos a vida e tentemos desvendar seus mistérios — e, mais importante, saibamos lidar com eles e extraiamos desses eventos as lições de que precisamos para resistir —, a filosofia prima por aliar numa única ciência o amor, a sabedoria e o amor à sabedoria. Campo do saber humano capaz de esmiuçar as grandes questões do homem, o pensamento filosófico se ordena em diversas frentes, sendo as que versam sobre a vida e sua a cessação as que mais despertaram o interesse do público leigo desde sempre. Hipócrates (460 a.C- 370 a.C), o pai da medicina, se valeu da filosofia, como todos os maiores sábios de seu tempo, para organizar de forma metódica e pragmática as descobertas que fazia no decorrer de sua vida, tão longa quão produtiva. Foram os estudos de Hipócrates que, guardadas as devidas proporções, facultaram aos cientistas, da Idade Moderna aos nossos dias, inferir que o corpo humano é uma rede coesa, um ajuntamento de sistemas que confluem para um único intuito, o de manter o gigantesco mecanismo que compõe a vida do homem em funcionamento, respeitando intervalos regulares, por óbvio. A teoria hipocrática dos quatro humores (sangue, fleuma e biles negra e amarela) forneceu a base para que se deduzisse que a vida só é possível graças a um encadeamento de sinapses. Uma célula nervosa transmite à outra as informações de que o organismo necessita a fim de conservar-se sadio. Os alimentos a serem ingeridos e em que quantidade, a medida exata de hidratação para não deixar que a máquina pife, a que horas dormir e por quanto tempo, a atividade fisiológica dos intestinos e dos rins, tudo isso é definido pelo cérebro, um arcabouço de circunvoluções de axônios e dendritos relativamente diminutos, mas que estarrece pela complexidade. Hábitos danosos à manutenção do bem-estar do corpo, como o consumo excessivo de álcool, gorduras trans, frituras, açúcar refinado, cafeína, sal em demasia, o tabagismo, o uso de drogas em geral, a falta de atividades físicas, tudo isso, além do famigerado estresse, claro, contribuem para minar a saúde, inclusive a mental.
Esse cenário de desolação, de caos e da consequente fragmentação moral que prospera em circunstâncias de descontrole civilizatório é o lugar de que o argentino-inglês Miguel Sapochnik se vale a fim de projetar “Repo Men: O Resgate de Órgãos” (2010), narrativa pronunciadamente distópica cuja essência de perdição remete-nos todos às opções equivocadas que nos trouxeram até aqui. O roteiro de Eric Garcia e Garrett Lerner assenta a história num argumento tão original quanto perturbador, pleno de digressões quanto a temas que pautam a cada vez mais a vida do cidadão comum, a despeito do estrato social a que pertença: a chance de prolongar-se a vida indefinidamente, graças a artifícios como a substituição pragmática de órgãos que se recusam a cumprir com as funções para as quais foram criados pela biologia humana. Uma vez falhando a natureza, entra em cena a tecnologia, arrogantemente convicta de que pode dar cabo das pendências do homem pós-moderno, que resolutamente vai entendendo que não tem muita alternativa frente ao avanço do tempo senão render-se a todos os expedientes pensados para conduzi-lo pela eternidade afora, no caso a aquisição de coração, rins, pâncreas fígado, pulmões novos conforme essas peças indiquem avarias. Pagando até seiscentos mil dólares, a juros de 19% ao mês.
Como em toda atividade mercantil, esse comércio também é feito com margem para endividamento e uma legião de inadimplentes desesperados, impelidos a devolver as mercadorias cujo valor não são capazes de pagar. Essa é a deixa para que Remy se mostre o funcionário dedicado que sempre fora. O personagem de Jude Law tem um gosto todo especial em perseguir os infelizes que atrasam as parcelas assumidas com a The Union, a gigante da biotecnologia que subsidia os transplantes, não se furtando a também lançar mão de expedientes mais bárbaros, como as sessões de espancamento tão características em filmes desse jaez. Sapochnik vai dotando seu personagem central de um pouco mais de humanidade à medida que se sabe que, da mesma forma que suas vítimas, ele teve de contar com algumas intervenções para desfazer da morte. O texto de Garcia e Lerner dá um giro, muito bem captado pelo olhar do diretor — que exorbita do gore nas cenas de forte apelo visual em que atores e figurantes são retalhados sem dó — e Remy passa a ser mais um membro da lista negra da The Union, alvo da sanha da empresa na figura de Jake Freivald, o melhor amigo vivido por Forest Whitaker, e mais ainda de Frank, o inimigo declarado de Liev Schreiber.
Sapochnik não abandona seu protagonista e reforça a ideia de redenção, elemento narrativo quase obrigatório — e de que o espectador parece nunca se cansar. Maior prova disso é a inclusão de Beth, a anti-heroína da brasileira Alice Braga, como a razão que leva o protagonista a querer enfrentar seus antagonistas com o ímpeto que julgava perdido. Nem tudo sai como o esperado, e o encerramento, com um pé na ficção científica e outro no noir de um lirismo sujo, brinda a um futuro muito pouco auspicioso (causa espécie que a história transcorra em 2025, isto é, daqui a pouco), doze anos antes da melancolia grandiloquente vista em “A Casa do Dragão” (2022), spin off de “Game of Thrones” produzido pelo diretor.
Filme: Repo Men: O Resgate de Órgãos
Direção: Miguel Sapochnik
Ano: 2010
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 8/10