É conhecida a anedota que Alfred Hitchcock (1899-1980), um dos pais do suspense no cinema, usara para definir o gênero que o consagrou. Em conversa com ninguém menos que François Truffaut (1932-1984), um dos fundadores da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou a sétima arte no século 20, Hitchcock dizia haver uma diferença pontual entre o suspense e a ação, por exemplo. Se um grupo de amigos está sentado à mesa e de repente explode uma bomba, isso é ação; se acaso esses mesmos amigos estão sentados a essa mesma mesa, o espectador sabe que há uma bomba embaixo deles e a narrativa se prolonga no tempo, isso é suspense. “O Orfanato” tem as duas bombas, a que explode de uma vez e a que demora o tempo necessário para apavorar o público. Brincando com o conceito de verdade versus delírio, o diretor Juan Antonio Bayona sequer deixa claro se seu enredo é mesmo uma história de espíritos que não conseguem abandonar o mundo da matéria e rumar para o além, atormentados por gente que também queria ter ido, mas permanece viva, ou nada além de simples alucinação.
O roteiro de Bayona e Sérgio G. Sanchez, escrito em 2008, é uma história de que como o passado interfere na vida de alguém, quase sempre para o mal, mas não sem sua participação direta. Nunca se tem absoluta certeza acerca de coisa alguma, a não ser de que tudo o que acontece se volta imediatamente para eventos que tomaram forma em algum momento, deveriam ter ficado num tempo remoto, mas são sistematicamente lembrados, fazendo com que o ambiente em que se transita adquira a atmosfera mórbida de quem anda por ali. E, dessa maneira, o medo torna-se não um elemento meramente figurativo, sugerido, mas é vivenciado integralmente.
“O Orfanato” se desdobra sobre as obsessões de Laura. A personagem de Belén Rueda fora criada numa casa para menores abandonados boa parte da vida, quando enfim consegue ser adotada. Ao saber que o imóvel está à venda, ela decide comprá-lo e se mudar para lá, a fim de montar seu próprio lar para crianças com doenças graves e limitações físicas ou intelectuais. Laura conhece o orfanato como ninguém: viveu ali anos felizes — e essa é uma pista importante na trama —, mas à medida que amadurece a ideia de se tornar a nova proprietária do estabelecimento, é tomada por uma miríade de pensamentos nefastos. A fixação a respeito do que pode ter acontecido com os demais moradores do casarão quando passara a ter uma família, há mais de quarenta anos, se apossa dela, que passa a ser refém de suas lembranças. Não muito tempo depois, Carlos, o marido vivido por Fernando Cayo, e principalmente Simon, o filho adotivo dos dois, estão tomados pelas mesmas perturbações.
O garoto, interpretado por Roger Príncep — ganhador do Prêmio Goya de Melhor Ator Revelação pelo papel — incorpora a aura de mistério já natural em torno da criança, e tanto pior numa criança como ele. Simon não é um menino como outro qualquer; ao ser obrigado a ter de lidar com condições desfavoráveis desde tenra idade, o filho de Laura e Carlos se mostra receptivo a formas desconhecidas de apreender o mundo, que sua mãe logo reconhece, teme, mas não chega a reprimir. Não é incomum que a solidão infantil, típica em crianças que como ele não convivem com indivíduos da mesma idade, termine por se desdobrar em manifestações paranormais. A invenção de um amigo imaginário, outro dos comportamentos habituais em meninos muito sozinhos, também se reveste de um aspecto aberrativo, não só pelo fato dessa criatura se apresentar com a cabeça coberta por um saco de pano, mas também por Laura identificar na figura uma lembrança apenas sua, que nunca dividira com mais ninguém. Os dois poderiam ter desenvolvido a capacidade de se comunicar por telepatia, mas também não se descarta a hipótese de Simon ser mero fruto da mente desvairada da protagonista, quadro psicótico que se agrava com a visita de Benigna, nome diabolicamente irônico para uma assistente social que não disfarça suas intenções perversas. Coincidência ou não, é depois que a personagem de Montserrat Carulla (1930-2020) entra em cena que se dá a reviravolta central de “O Orfanato”, o que obriga Laura e Carlos a consultarem a vidente Aurora, de Geraldine Chaplin, e o parapsicólogo Leo Bálaban, encarnado por Édgar Vivar (o Seu Barriga do seriado mexicano “Chaves”) a fim de saber o que pode ter acontecido realmente.
O aspecto funesto, realçado pela fotografia de Oscar Faura, dá ao espectador a impressão de se estar preso no elevador de um prédio antigo, que mal consegue absorver o exíguo raio de luz que tenta se infiltrar por uma fresta da porta, quando se grita por socorro e se tem a certeza de que ninguém nos ouve. Dessa maneira poeticamente sombria “O Orfanato” chega ao fim, com um dos desfechos mais intrigantes numa história que parecia só querer dar uns sustinhos.
Filme: O Orfanato
Direção: Juan Antonio Bayona
Ano: 2007
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 10