Não é verdade que o amor de mãe seja incondicional, à prova de quaisquer abalos. O que acontece é que mães conseguem ser tão decisivas na vida de uma pessoa que quando se resolvem por mudar a vida de um filho — na maior parte das vezes para a melhor, mas em alguns casos exercendo uma influência nefasta sobre gente cuja personalidade ainda está por se constituir —, não há nada nem ninguém que as possa deter. São como fios d’água numa represa, procurando a greta através da qual, com todo o método, vão forçar o concreto duro até que a estrutura toda se rompa e a barragem venha abaixo, refazendo ciclos e arrastando consigo quem quer que ouse tentar segurá-la.
“Farol das Orcas” (2016), drama argentino-espanhol de Gerardo Olivares, desenvolve o argumento central de seu longa — uma mãe em busca de ferramentas que lhe permitam a si mesma entender seu filho e, dessa forma, situá-lo no mundo — valendo-se de um cenário estonteante e cheio de feras, metáfora categórica sobre o que pode ser a vida. Inspirado por eventos reais ocorridos em Chubut, província do centro-sul argentino, o filme de Olivares, coprodução com a Espanha, promove a discussão de temas delicados como o autismo valendo-se de performances simplesmente memoráveis, capazes não só de mesmerizar, dada a entrega dos ótimos atores em cena, como de fazer com que o público leigo, até quem nunca havia tomado pé da gravidade do assunto, se comova e se ponha no lugar dos personagens, um por um, a depender do momento em que esteja o roteiro, criação do diretor em colaboração com Lucía Puenzo e Sallua Sehk.
O trabalho de Olivares tem origem em “A Prostituta e a Baleia” (2004), de Luis Puenzo, pai de Lucía. A força do mote, aliada à beleza selvagem da Patagônia argentina, chamaram a atenção para a vida de Roberto Bubas, o Beto, guarda florestal que passara boa parte dos nove anos radicado no meio do nada, tendo por companhia do cavalo e das orcas que estuda com desvelo, sem chegar jamais a um resultado conclusivo. Em se falando de conclusões, o longa só saiu do papel mesmo quando o diretor espanhol assumiu o projeto, doze anos depois da ideia inicial e dispondo de sinal verde para um orçamento mais folgado, dividido entre argentinos e espanhóis.
A médica madrilenha Lola, interpretada por Maribel Verdú, começara a estudar com afinco tudo quanto dissesse respeito ao autismo, condição algo rara e sobre a qual ainda se conhece relativamente pouco. Em dada altura da história, Lola faz questão de esclarecer que o problema que afeta a vida de seu filho não é exatamente uma doença, mas um distúrbio neurológico, e só isso já valeria o filme. Ela cruza o Atlântico em busca de algum alívio para o sofrimento de seu filho Tristán, desempenho tocante de Joaquín Rapalini, portador do transtorno, motivada pela boa resposta do garoto diante de um documentário em que Beto se mistura às orcas, com alguma justiça famosas pela agressividade com que investem contra suas presas, mas animais que impressionam pela docilidade. Lola e Tristán surgem sem prévio aviso e por isso se forma um mal-estar entre ela e o ermitão, cuja misantropia é trabalhada de modo irretocável por Furriel. Daquele primeiro contato quase desastroso nasce uma relação sólida entre os três, com direito ao envolvimento romântico entre Beto e Lola que contrabalança o filme com leveza, não obstante o autismo também ser encarado sem grandes dramas, decerto porque o caso do guarda florestal com a médica — inusitado, mas previsível — ganhe destaque.
“Farol das Orcas” é cirúrgico ao insinuar que boa parte da inadequação de Tristán se deve à maneira como fora educado. Não se sabe o que houve com o pai do garoto (bem como permanece uma lacuna quanto ao que pode ter acontecido com a família de Beto, por mais que se possa especular a respeito com larga margem de acerto), e esse novo núcleo de afetos, fundamentado em ausências, perdas e recomeços, vira a grande sacada do enredo, com espaço para a inclusão de figuras periféricas na narrativa. As participações de Ana Celentano como Marcela, a nova amiga cuja história coincide com a de Lola em muitos aspectos, confere ao filme boa dose de verossimilhança e lirismo. Marcela, uma pintora de Buenos Aires que se reinventa na gélida e isolada Patagônia, se presta a uma espécie de alter ego da protagonista, despertando-lhe a vontade de se estabelecer no novo paraíso possível e por extensão o gosto pela vida, que julgava perdido. Na outra ponta, orbita Bonetti, o oficial de Osvaldo Santoro, declaradamente avesso às intenções de Beto quanto a ajudar na recuperação de Tristán, e portador das revelações que terminam por gorar os planos de um e da outra. Mas a última sequência deixa no ar a ideia (ou a ilusão) de felicidade, com a vitória do personagem de Rapalini sobre o medo, do mundo e de si próprio.
Filme: Farol das Orcas
Direção: Gerardo Olivares
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10