A obra-prima da crítica literária de D. H. Lawrence

A obra-prima da crítica literária de D. H. Lawrence

No livro “Estudos Sobre a Literatura Clássica Americana” (Zahar, 253 páginas, tradução de Heloísa Jahn), o inglês D. H. Lawrence analisa, às vezes de forma brilhante, a literatura de Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Herman Melville e a poesia de Walt Whitman (que influenciou sua poética).

Lawrence, prosador e poeta dos melhores, comparável ao próprio Whitman e mesmo ao britânico William Blake, examina também a literatura de Fenimore Cooper, de forma inventiva e independente, de Richard Henry Dana e de Hector St. John de Crèvecouer. Analisa inclusive Benjamin Franklin. É uma delícia a inteligência de Lawrence tentando justificar a literatura do segundo time, mas divertida e prazerosa, de Cooper. Este é como Jack London: excelente autor do segundo time da literatura universal. Os dois são grandes contadores de histórias, com uma prosa meio relaxada e sem o mesmo alcance de Mark Twain, que Lawrence não destaca.

Estudos Sobre a Literatura Clássica Americana (Zahar, 253 páginas, tradução de Heloísa Jahn)

O livro é da década de 1920 e Lawrence morreu em 1930, aos 44 anos. Ter informação sobre o período é importante, sobretudo porque, para escrever os textos, no geral originais, o crítico e escritor inglês não contou com ampla fortuna crítica como suporte para suas ideias e análises. Isto mostra que sua capacidade de examinar os autores americanos, com autonomia de julgamento e capacidade de entendê-los minuciosamente, era a de um crítico extremamente perceptivo.

No prefácio, Lawrence escreve: “Ouçam os Estados Unidos garantindo: ‘Chegou a hora! Os americanos hão de ser americanos. Hoje os Estados Unidos são um país adulto, artisticamente. Não podemos continuar pendurados nas saias da Europa, comportando-nos como colegiais extraviados de seus mestres-escolas europeus’…”.

A literatura americana, na interpretação de Lawrence, tem a qualidade da literatura russa, ainda que sejam muito diferentes. “Dois corpos de literatura moderna parecem-me ter atingido realmente uma nova fronteira: a russa e a americana. (…) E quando digo americana, não estou dizendo Sherwood Anderson, que é tão russo. Estou falando do pessoal da antiga, dos volumezinhos finos de Hawthorne, Poe, Dana, Melville, Whitman. Esses, parece-me, chegaram a uma nova fronteira, tal como os mais fornidos Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov e Artzybasheff, do lado de lá, chegaram a uma nova fronteira. Os frenesis mais ousados do modernismo ou do futurismo francês por enquanto ainda não atingiram o timbre de extrema consciência atingida por Poe, Melville, Hawthorne e Whitman. Os europeus modernos estão todos tentando ser radicais. Os grandes americanos mencionados simplesmente o eram. Razão pela qual o mundo se esquivou deles, e se esquiva até hoje”. A omissão de Gógol e Turguêniev torna a citação de Artzybasheff mais idiossincrática. Todo grande crítico tem as suas. Harold Bloom quase chega a dizer que Shakespeare “inventou” o Homero. Quase.

Lawrence faz um comentário curioso sobre os escritores russos e americanos: “A grande diferença entre os russos radicais e os americanos radicais está no fato de que os russos não são explícitos e detestam a eloquência e os símbolos, considerando-os meros subterfúgios, enquanto os americanos rejeitam tudo que é explícito e sempre recorrem a uma espécie de duplo significado. Os americanos adoram o subterfúgio. Preferem manter sua verdade bem protegida e em segurança dentro de um cesto de vime escondido entre os caniços até o momento em que alguma amável princesa egípcia apareça para resgatar o bebê”. Noutras palavras, a literatura americana precisa de um intérprete, como Lawrence, para firmá-la como grandiosa?

É uma pena que Lawrence, pelo menos neste livro, não tenha aberto espaço para Henry James, um dos maiores prosadores americanos. O trecho do parágrafo anterior é quase uma análise indireta da ambiguidade da literatura de James. Lawrence poderia ter dito, também, que os escritores russos em geral, como Dostoiévski, Tolstói e Herzen, queriam, além de fazer literatura, alta literatura, fazer política e mudar o mundo. É possível dizer quase todo grande livro russo contém, além de literatura de qualidade, um panfleto político — e sobre isto, porque não é seu objeto de estudo, Lawrence nada diz (recomendo “Pensadores Russos”, do filósofo anglo-letão Isaiah Berlin, àqueles que se interessam pelo debate). Os escritores americanos, ainda que não necessariamente despolitizados, não queriam fazer política diretamente — daí a elasticidade da máscara, do uso da ambiguidade, ou, como quer Lawrence, “duplicidade”.

Ao analisar Whitman fica-se com a impressão de que Lawrence está tratando de si próprio. Os dois são irmãos (Harold Bloom diz que o americano é pai do inglês), ainda que Whitman, para seu país, como poeta, tenha maior alcance do que Lawrence para a Inglaterra. É possível que a prosa de Lawrence soterre, pelo menos em parte, a sua poesia. Não porque a poesia seja inferior, sem a força da prosa, e sim porque os romances, como “Mulheres Apaixonadas”, com trechos altamente poéticos, têm uma temática muito forte no campo do erotismo, da sensualidade.

A tradução de Heloísa Jahn é precisa, estabelecendo em português a frase poética de Lawrence (e sem afetação, o que levaria fatalmente à pieguice), mesmo quando o autor do romance de “O Amante de Lady Chaterlley” está escrevendo tão-só crítica literária.