O amor é a aventura mais prazerosa a que alguém pode se lançar na vida. Perdido, sequioso de alento, de conforto espiritual, de alguma coisa que o livre da sensação de desperdício que a solidão encerra tão bem, o homem atira-se sobre o naco de esperança a que tem direito com fúria, ansiando extrair dele a seiva com que pode se nutrir para além deste mundo. Lamentavelmente, nem todos têm a sorte grande de se deparar com aquele imenso pote de ouro no fim do arco-íris — na verdade, a minoria a tem —, mas existem pessoas raras, que sublimam seus próprios malogros e são capazes de se dedicar à felicidade do outro como se essa lhe fosse uma questão vital, um assunto de vida ou de morte sem cuja definição não pode ter paz, a ponto de resvalar no desespero ou na loucura, esses meandros em que as emoções humanas também se desencaminham quando incapazes de processar eventos traumáticos demais. A ninguém é dado o direito de atropelar nem as pequenas convenções do dia a dia — tácitas e que se eximem de registros formais — e tanto menos a lei, o regimento máximo a erigir a boa conduta do indivíduo.
Mestre em desvendar as sendas espinhosas da natureza humana, o turco Mehmet Ada Öztekin põe na estrada uma trama plena de suas subidas e declives e faz de “Boa Viagem” (2022) um filme particularmente bonito, conduzindo o enredo com mão segura, mas sem se esquecer de apreciar a aridez da paisagem. O filme de Öztekin decerto não teria tanta força se a ação se passasse toda numa locação fixa, com atores desenvolvendo seus papéis em cenários limitados ao passo que se empenhavam tornar crível a ideia de liberdade de espírito e do amor como princípio de todas as coisas, como queria o filósofo positivista francês Auguste Comte (1798-1857). O roteiro, parceria do diretor e Hakan Evrensel, em cujo romance de mesmo nome o longa se baseia, aproveita bem os deslocamentos dos personagens centrais por cidadezinhas do interior da Turquia, e por meio desse recurso a história ganha ora dramaticidade, ora leveza ao se desdobrar sobre a vida de dois homens amargurados, cada qual a sua maneira.
Já na sequência de abertura fica claro que espécie de homem é o capitão Salih. Um plano detalhe bem construído e bem filmado mostra o personagem vivido por Engin Akyürek engraxando um sapato preto, arrumando-se como se obedecesse a um ritual, devotamente. Quando termina, a câmera desce e se constata que Salih tem apenas uma perna, consequência do acidente ao pisar numa mina durante uma das muitas guerras travadas pela Turquia, ocorrido há alguns meses. O trabalho de Öztekin não chega a ser desabridamente chapa-branca, mas existem claras provas de simpatia ao governo de Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia desde 28 de agosto de 2014 e um homem no mínimo controverso graças a suas declarações sobre o suposto fascismo de Israel — sem nunca ter se levantado contra nenhuma das ditaduras de fundo autocrático e religioso que infestam o Oriente Médio. Pouco depois, o capitão aparece revirando gavetas à procura de dinheiro ajudado pelo tenente Kerim, de Tolga Saritas. Duygo, a mulher de Salih, interpretada por Belfu Benian o escondera a fim de evitar novas recaídas do marido no abismo das drogas, que o transformam num sujeito assombrosamente violento.
“Boa Viagem” se concentra na saga desses dois desgraçados pelas montanhas e planícies turcas rumo a um casamento que, se consumado, mudará a vida de Kerim. Indo e voltando em flashbacks bem situados, Öztekin constrói sua dupla de protagonistas marcando bem a casmurrice de Salih e o temperamento solar e quase pueril do personagem de Saritas, contraste sempre imbatível no cinema. Mártir de suas próprias causas, Salih, involuntariamente, dá algumas pistas do que pode se tornar a vida do amigo ao seu lado, esse, sim, o grande herói do filme.
Filme: Boa Viagem
Direção: Mehmet Ada Öztekin
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Road movie
Nota: 7/10