Fomos programados para reagir aos mais insólitos cenários de adversidade, a fim de que permaneçamos com algum cacife no jogo da vida, que cobra de nós a resolução desses problemas, no menor tempo possível, porque não demora e outras questões tão ou mais vultosas irão se impor. Nelson Rodrigues foi um dos escritores mais geniais da história do Brasil. Observador arguto dos costumes — e da hipocrisia — de nosso povo, Nelson centrava fogo no que considerava de mais nocivo na natureza do homem — e do brasileiro, em particular: sua sanha por poder, por subjugar o semelhante, por se achar melhor que os outros, por querer se dar bem a qualquer custo, tomando por premissa a mediocridade e a baixeza da classe média. Bons tempos em que as pessoas tiravam ensinamento até da vulgaridade de uma folha de jornal, sobre a vida, mas também acerca da morte. Aliás, a indesejada das gentes intriga a humanidade desde que o mundo é mundo. Lidar com a finitude nunca é tão simples, e quanto mais cheio de particularidades doloridas o cenário se apresenta, mais insustentável a morte se torna. Martha Weiss tem de encarar a perda inesperada da filha que acabou de nascer e logo percebe que as tantas complicações que a tragédia suscita podem ser igualmente perversas. A protagonista de “Pieces of a Woman” (2020), do diretor húngaro Kornél Mundruczó, literalmente incorporada pelo talento de Vanessa Kirby, come o pão que o diabo amassou, mas ninguém sabe se o digeriu. A senhora que fecha todas as portas se revela em toda a sua feiura numa guerra, arrasando tudo o que encontra pela frente, a começar pela verdade, até chegar à honra. É o que se vê em “Dunkirk” (2017), do britânico Christopher Nolan, que narra a história dos mais de 300 mil soldados que lutavam contra Adolf Hitler na costa francesa durante a Segunda Guerra Mundial, mas são encurralados pelas tropas do facínora. “Pieces of a Woman”, “Dunkirk” e mais três títulos, lançados entre 2021 e 2014, todos no acervo da Netflix, deixam claro que a vida ensina mesmo. Só nos resta aprender.
A história traz diversos eixos familiares no sul de Ohio, na década de 1960. Entre eles, o de Arwin, órfão depois que o pai (um veterano de guerra) se matou e a mãe morreu de câncer. Ele e Charlotte, que também é órfã, vivem como irmãos na casa da avó do jovem. Quando um novo pastor chega à cidade e seduz Charlotte, Arwin descobre que tem a mesma personalidade violenta do pai. Em outro arco, Carl e Sandy formam um casal de seriais killers, que dão carona a jovens rapazes somente para matá-los.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
Um homem, um destino, uma razão para seguir. Esta poderia ser a frase usada para trabalhar a divulgação de “O Livro de Eli”. O homem, o Eli do título é um andarilho perdido numa América destroçada, depois de sucessivos anos de guerras; o destino, reencontrar o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Quanto à razão para continuar sua jornada, bem, o livro foi tudo que lhe restou na vida — e Eli não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores. Em falando nisso, por óbvio ele se depara com inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, mas parece confiar demais em seu destemor. O medo serve para o homem como um sistema de freios morais: quanto mais se teme alguma represália, mais se evita passar por cima do estabelecido, do sistema. O caráter anti-utópico da história é digno de nota ao sugerir um mundo em que o desprezo por princípios éticos mais do que desejável, é obrigatório. Todos nós já vimos esse filme e sabemos como ele acaba.
Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de maneira inteiramente fidedigna. Sempre há que se fazer uma ou outra correção de rota, a fim de tornar fílmica uma narrativa pensada exclusivamente para o papel. O caso se complica o seu tanto em se tratando de textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali escrito, seja em que religião for. Em “Noé”, Darren Aronofsky se desdobra sobre alguns versículos do livro do “Gênesis” a fim de extrair deles um épico dotado de fúria, toques de psicologia e o máximo de rigor histórico que consegue. Sua interpretação da parábola do dilúvio, cercada de lirismo e fantasia, é digna de figurar como uma das grandes passagens do cinema. O diretor banca suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. Russell Crowe dá vida ao Noé que boa parte do inconsciente coletivo conhece, um homem de princípios sólidos e incorruptíveis, filho direto da linhagem de Adão e Eva. Deus, indignado com o que o homem tem feito da Sua criação, decide começar tudo do zero. O expediente de que Ele lança mão para isso é um dilúvio que irá durar quarenta dias e quarenta noites, a fim de não restar pedra sobre pedra. Para salvar os animais – puros por natureza, mesmo as feras predadoras, que o são só porque seguem seus instintos — e a descendência humana, Noé é incumbido da hercúlea tarefa de erguer uma arca pantagruélica, no intuito de abrigar todas essas criaturas e sua prole. O enredo de Aronofsky é dividido em três atos, e cada qual tem o condão de representar uma fase da trama. Noé peregrina rumo à montanha habitada por Matusalém, personagem mítico que, segundo as Escrituras, teria vivido quase mil anos e seria o patriarca da humanidade; seguem-se os instantes anteriores à catástrofe e a situação irremediável dos ímpios, em polvorosa. Este ponto da saga se conclui com a reclusão de Noé e sua família na arca, até que as águas sequem. Aronofsky é pródigo em se aprofundar na psique de tipos angustiados e obsessivos, como em “Cisne Negro” e “Pi” e tirar dali a razão mesma para a história que está sendo exibida: Noé foi o escolhido por Deus porque certamente seria o único capaz de entender Seus desígnios sem maiores conflitos existenciais. Ele cumpre a missão, guardando para si qualquer sombra de pavor ou dúvida. Pode-se especular um pouco a respeito da índole do personagem-título ao se analisar o comportamento de seus familiares, escanteados na história original. É por meio deles que o público enxerga em Noé a sua dimensão humana, frágil, errante como qualquer outra, mas empenhado em sua missão, decerto apreensivo com o que será do mundo depois da daquela resolução divina o seu tanto drástica, o que o espectador claramente percebe.