Morte, a gente ainda vai rir na sua cara

Morte, a gente ainda vai rir na sua cara

É líquido e certo que um monte de gente consternada vai escrever a respeito de Jô Soares nas próximas horas, nos próximos dias, por muito tempo, com muito mais graça, capacidade, fluência e propriedade do que eu. Não importa. Eu também vou lamentar. E vou me expressar à minha maneira para prestar um sincero tributo e dar vazão à tristeza profunda que hora me invade. Sinto-me pesado demais nos vazios. Parece que fiquei gordo de repente, que fui preenchido por nacos de melancolia e de desencanto. Não dá para segurar. Não tem como para passar batido e deixar de escrever algumas linhas a respeito, após tomar conhecimento da morte de Jô Soares, um dos brasileiros mais honoráveis dos últimos tempos.

A primeira vez que vi a figura cômica de Jô Soares foi pela televisão, assistindo a um filme antigo, em preto e branco, produzido nos anos 1950. Se não me trai a memória, ele contracenava com Oscarito e com Grande Otelo, outros dois ícones do humor. O carisma daquele sujeito rechonchudo que sorria com o próprio corpo conquistou-me desde o primeiro instante. Anos mais tarde, com o advento de programas humorísticos como “Faça amor, não faça guerra”, “Satiricom” e “Planeta dos homens”, da Rede Globo, passei a conhecer o trabalho de Jô Soares e me tornei um integrante da sua vasta legião de fãs.

Antes do surgimento da internet, não havia nada de muito divertido para se fazer em casa, senão brigar com os irmãos, bater boca com o cônjuge e assistir à TV para acompanhar os desenhos animados, os filmes infanto-juvenis, os bangue-bangues, as novelas e os propalados programas de humor. O Brasil vivia o cruel período da ditadura militar que, hoje, muitos patriotas doidivanas clamam pela volta imediata, num formidável surto de estupidez coletiva que mistura política com fundamentalismo religioso. Um escândalo.

De certa forma, valendo-se de piadas, bordões, trejeitos e muito sarcasmo, Jô Soares representava a resistência democrática e a crítica velada ao regime autoritário, ao fazer a audiência se fartar de riso numa época infeliz da história, quando o medo e o choro predominavam no seio das famílias brasileiras de classe média. A partir de então, Jô se destacou, teve a carreira catapultada pelo talento inato de divertir pessoas e se tornou muito popular, conquistando programas televisivos próprios, como “Viva o Gordo”, “Jô Soares Onze e Meia” e “Programa do Jô”, os dois últimos no formato de um programa de entrevistas nos quais o âncora genial arrancava o que havia de melhor e mais divertido nos seus entrevistados.

Gosto, bunda e vontade de tirar o Bolsonaro do poder nas próximas eleições, cada um tem o seu. Não voto nesse sujeito nem com uma faca no pescoço. Na minha avaliação, juntamente com Chico Anysio, Jô Soares é o mais competente, o mais politizado, o mais culto e o mais inteligente humorista brasileiro de todos os tempos. Alcançou também o justo reconhecimento do público e da crítica especializada, ao escrever obras literárias relevantes, como “O Homem que Matou Getúlio Vargas”, “Assassinatos na Academia Brasileira de Letras” e “O Xangô de Baker Street”.

Eu sei que este texto está comezinho, enfadonho, claramente abaixo do que se esperava de um cronista experimentado como eu. Acontece que estou triste demais para me aplicar. Em tempo de trevas, como esse que vivemos no Brasil, seres humanos cultos, gentis, suaves e iluminados como Jô Soares farão enorme falta. Jô está deixando o seu séquito de admiradores entregue à própria sorte. A partir de agora, estamos por nossa conta e risco. Eu sei que a notícia é ruim, que soa exagerada e que pode passar a impressão de um melodrama. Só que o drama antagoniza a comédia. Então, é rir para não chorar. E ir tocando a vida em frente, em busca de outros motivos pelos quais valha a pena sorrir.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.