Novo filme da Netflix é um tratamento de choque que vai te perturbar, mas também te fazer virar o jogo Divulgação / Netflix

Novo filme da Netflix é um tratamento de choque que vai te perturbar, mas também te fazer virar o jogo

Imaginar o que se passa por trás das quatro paredes que cercam o dia a dia de um casal é uma tarefa que demanda uma capacidade de sobrepor-se à vida real acima da média. Casamentos aparentemente felizes são, em muitas circunstâncias, marcados por agressões de parte a parte, cenário em que a mulher quase sempre encontra-se em condição agudamente inferior — até por não contar com a força masculina —, mas prefira escondê-lo por amor-próprio (ou falta dele), amor a esse homem (ou o que creem que seja amor) e até uma esperança vã de que ele mude (ou um sentimento mais afeto à ilusão, pura e simples). Homens não conseguimos nos desapegar desse status de dominação, de excessos, sobre indivíduos que deveriam ser parte de um projeto de vida em comum, mas que viraram meros apêndices de nossa covardia, se acovardaram também e simplesmente engolem a seco uma existência de submissão cega ou, ainda pior, anulam-se, apagam-se, tornam-se um utensílio doméstico, um fogão, uma panela, um escorredor de louça com que se adapta no ramerrão do dia a dia, mas sem os quais pode-se passar sem maiores traumas.

“Darlings” (2022), da diretora indiana Jasmeet K. Reen, vai desfraldando a vida a dois de um homem e uma mulher mudando lentamente o enfoque do agressor sem conserto para uma vítima que se cansa de ser subjugada e se prontifica a adotar medidas radicais para virar o jogo, ainda que, no fundo, prefira acreditar que o homem com quem desfrutara momentos alegres, de prazer, de êxtase, ou mesmo os francamente melancólicos, que servem para realçar o valor dos primeiros, é, sim, capaz de mudar, basta que, antes de mais nada, seja devidamente estimulado e, então, dê também sua parcela de colaboração, ao querer ser transformado. O roteiro de Reen e Parveez Sheikh é um monumento ao realismo ao apresentar a questão como muito da complexidade que lhe é intrínseca, fazendo com que fique claro os personagens se amam, mas a conjuntura de ataques cada vez mais frequentes que degringola no que assiste no desfecho, momento em que, de novo, a realidade e seus acasos se impõem, só poderia mesmo requerer algum pragmatismo — no caso em tela, pragmatismo demais, se que é se pode definir assim o modo bárbaro como tudo acontece.

O amor, bem como as cartas que inspira, é o ridículo da vida, como sugere o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935) em “Tabacaria” (1933), e Vinicius de Moraes (1913-1980), gênio e outra sumidade no assunto, disse muito bem em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito enquanto os amantes se amarem. Alia Bhatt e Vijay Varma dão vida a esse casal que se nega, cada qual a sua maneira, a abdicar de uma união por amor que se esfacela a olhos vistos, graças às surras devotadas de um marido completamente perdido entre o que sente e e sua total inépcia quanto a externar o que de fato lhe vai ao coração, e uma esposa que a tudo se molda, não entendendo que essa sua postura mais que condenar a si própria a um destino de miséria espiritual, o arrasta também para esse limbo onde nada viceja, e o pouco que há de belo, de sólido se desmancha ao olhar frio de um amor que já não se sustenta. A Badrunissa de Bhatt, a Badru, é uma mulher que, quase a custo da própria vida, entende que o que ainda poderia haver de pulsante em seu casamento com o personagem de Varma, um Hamza que, por seu turno, vai introjetando o papel do grande vilão da história, malgrado o argumento central seja bem conduzido por Reen, uma diretora atenta e muito hábil em jogar com as vulnerabilidades do público, o terceiro elemento nesse casal. Contrariamente ao que acha na esmagadora maioria das produções de Bollywood, Badru e Hamza têm suas zonas cinzentas — quem assiste flagra-se tentado a sentir pena desse marido truculento, mormente depois da passagem que seu chefe faz com que limpe a privada de seu banheiro particular. Por óbvio, o canalha, interpretação soberba de Varma, é canalha e ponto, mas recursos narrativos como esses nos ajudam a abreviar um pouco a distância natural que separa gente de bem de tipos como ele.

Os musicais, lamentavelmente, permanecem, e blagues nas cenas de Badru com a mãe, de Shefali Shah, passam longe de um respiro cômico, mas “Darlings” é um filme sem par, especialmente na indústria cinematográfica hindu, com suas cores e ritmos alegres em excesso. Uma árvore torna menos árido o deserto.


Filme: Darlings
Direção: Jasmeet K. Reen
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10