Filme na Netflix mistura machismo, misoginia e marketing para contar a história dos cavaleiros do rock farofa Jake Giles Netter / Netflix

Filme na Netflix mistura machismo, misoginia e marketing para contar a história dos cavaleiros do rock farofa

Loucura, polêmica, contracultura e declarações e comportamentos politicamente incorretos marcaram os efervescentes anos 1980 — além de drogas, sexo livre e promíscuo, manifestações de uma delinquência hoje quase romântica e a afirmação do bom e velho rock ‘n’ roll, em grande catalisador de tudo isso. Foi justamente ao longo da “década perdida” (para nós, brasileiros) que o gênero musical de rebeldes sem e com causa experimentou a revolução de que desfruta ainda hoje, um tempo interditado à contestação, à criatividade, à crítica inteligente, ao novo. Filho dileto desse cenário, o Mötley Crüe foi uma das bandas de rock mais simbólicas do que rapagões e mocinhas de mais de quarenta anos atrás queriam ser, astros e estrelas de um firmamento sem limite para o sonho, coalhado de possibilidades e sem lugar para restrições de nenhuma ordem. Naturalmente, haveria de chegar o momento em que a áspera realidade bateria à porta, que veio sob a forma de tragédias, contornáveis e transitórias, ou aquelas para as quais não há chance de fuga, definitivas e que encerram a necessidade de mudanças urgentes e profundas.

O diretor Jeff Tremaine tenta capturar o espírito daquele tempo na cinebiografia “The Dirt — Confissões do Mötley Crüe” (2019), optando por, lamentavelmente, dourar a pílula da verdade com passagens inconfessavelmente delirantes. Conhecido pela franquia “Jackass”, Tremaine usa da experiência nessas produções pouco rigorosas e nada metódicas, em que quanto menos houver de delicadeza mais o público se lambuza, para sugerir o que pode ter se passado nas ocasiões em que Nikki Sixx, Vince Neil, Mick Mars e Tommy Lee se despediam da plateia e iam inventar jeitos um tanto sui generis de gastar o dinheiro dos cachês, cada vez mais nababescos. Os membros de uma das bandas mais autênticas do cenário roqueiro, que deu cara e voz a tipos esquisitos e insubordinados como eles, mantinham em privado a nonchalance e o rock appeal apreciados no palco, ainda que fossem tidos por meio chorões e afrescalhados, inclusive por outros músicos do gênero. Cheios de suas próprias visões de mundo, os quatro cavaleiros do rock farofa levavam a vida do modo como achavam mais coerente — Neil, o vocalista, a exemplo de Mick Jagger, decerto foi um dos maiores garanhões do showbizz de todos os tempos, malgrado as calças apertadíssimas, a juba loura e o rosto liso como o traseiro de um querubim —, e no palco se tornavam os deuses de um culto pagão, ou mesmo demoníaco.

Baseado em “The Dirt: Confissões da Banda de Rock mais Infame do Mundo” (2001, Belas Letras), de Neil Strauss, o ghostwriter do quarteto, o roteiro de Amanda Adelson e Rich Wilkes volta a carga para os instantes de catarse coletiva da trupe diante de estádios lotados, uma espécie de marca registrada do conjunto. Já no show inaugural, no auditório de uma escola em 1981, o Mötley Crüe já se fez notar pela publicidade (negativa, se se tratasse de uma empresa ou uma banda qualquer, mas muito benéfica no caso deles) graças à pancadaria generalizada por causa de um espectador que teria questionado a virilidade de Neil, que respondeu se jogando da ribalta sobre o sujeito, no que foi seguido por Sixx, a verdadeira ovelha negra entre eles. As cenas de maior teor dramático cabem a Douglas Booth, que encarna a alma atormentada de seu personagem com doçura e selvageria em igual proporção, e divide esse crédito com Vince Mattis, que vive Sixx na infância. O episódio em que o baixista, ainda Frank Jr., enfrenta Deana, a mãe bêbada e promíscua de Kathryn Morris, é uma das sequências mais deprimentes que o cinema já produziu, e se não é verdade é ao menos verossímil. Nesse diapasão, o da deterioração psíquica de que resulta sofrimento atroz e sem nada que o possa justificar, aditivos químicos da pesada e dinheiro a rodo, também vibra o Vince Neil de Daniel Webber, invejado no início, mas digno de pena à medida que chafurda no pântano moral em que termina por se viciar, até que se flagra vítima do acontecimento mais funesto de sua vida; nesse ponto, se acende para ele a luz amarela e Neil começa um processo de autoanálise doloroso, gradual e pleno dos solavancos que o levam a deixar a banda em 1989. A espondilite anquilosante que deformava os ossos de Mick Mars, interpretado por Iwan Rheon, é citada apenas protocolarmente e o Tommy Lee de Machine Gun Kelly é quase ignorado, certamente por ser o mais normal — ou o menos doido da turma. E eis que alcançamos o xis do problema no filme de Tremaine.

“The Dirt — Confissões do Mötley Crüe” não se aprofunda em nada. Apresenta o museu de grandes novidades que os fãs conhecem bem, empolga os leigos, mas não chega a fazer esses neófitos saírem correndo para baixar “Dr. Feelgood” (1989), o álbum de maior sucesso do quarteto, e, o pior, prefere ficar mesmo na fria superfície do marketing. É uma pena. O Mötley merecia mais.


Filme: The Dirt — Confissões do Mötley Crüe
Direção: Jeff Tremaine
Ano: 2019
Gêneros: Biografia/Drama
Nota: 7/10