Testamento vital para uma alma viva, ou o autoréquiem de um pobre diabo

Testamento vital para uma alma viva, ou o autoréquiem de um pobre diabo

Quando eu morrer, aos cento e vinte anos, esquálido, terminal e sem audição, não digam que eu descansei. Não devolvam sobre os meus restos mortais o peso da minha própria morte.

Quando eu morrer, aos cento e dez anos — Noel Rosa me perdoe — mas quero choro e vela, apesar de tudo. Também quero a fita amarela gravada com o nome dela, mas não se esqueçam do choro. Nem da vela.

Quando eu morrer, aos cem anos, quero que, enfim, fique registrado, para meu alívio, nos anais da história, que Alexandre, O Pires e o pagode não dominaram o mundo. Nem eles nem quejandos.

Quando eu morrer, aos noventa anos, não digam nem especulem sobre minhas bondades ou maldades. O que a minha mão direita fez nem a esquerda soube.

Quando eu morrer, aos oitenta anos, esqueçam meus pecados, pois eu não vou esquecê-los. Levo em meu caderninho todos os malfeitos da minha breve passagem, e vou relatá-los a quem quer que me receba onde quer que seja.

Quando eu morrer, aos setenta anos, não digam que fui muito cedo. É uma boa medida para experimentar as dores do mundo e o nada que permeia seus intervalos.

Quando eu morrer, aos sessenta anos, não procurem saber a causa mortis. É provável que quem me admire se decepcione no meu último ato; e que quem me queira mal se veja frustrado pelo fato de que o fim da vida de qualquer um é — sempre — o fim do seu próprio sofrimento.

Quando eu morrer, aos cinquenta anos, olhem para os meus filhos e perguntem-lhes se querem herdar meus carros e guitarras. Caso contrário, doem-nos a quem os mereça, porque eu não terei aproveitado tudo que eles me ofereciam.

Quando eu morrer, aos quarenta anos, não culpem a humanidade nem o planeta pela perda de uma vida jovem. De hipocrisia já basta os carros elétricos que não se importam de onde vem a energia da tomada.

Quando eu morrer, aos trinta anos, sem filhos, netos e afilhados, queimem minhas coleções de discos e livros; elas me envergonham e ninguém se importa com a bagagem alheia.

Quando eu morrer, aos vinte anos, não se peguem imaginando quanta vida ainda teria pela frente. Vão-se os corpos, ficam os fatos e as memórias, com ou sem uma lira publicada.

Quando eu morrer, aos dez anos, procurem-me nas fotografias e nas histórias pitorescas. É muito triste visitar o sepulcro de um infante.

Quando eu morrer, no ventre da minha mãe, não se esqueçam de que eu existi. O que eu era refletiria no que eu poderia ser. Sim, eu existi.