Não é de hoje que a dita civilização perde-se em devaneios a respeito do tal “bom selvagem”. Já em meados do século 18, o pensador francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) dedicou um vasto tempo de seus estudos a fim de provar que o homem é um ser dotado de uma natureza puramente instintiva, bondosa, e que se transforma-se na fera que todos nós conhecemos, é porque fora corrompido pelo meio onde se desenvolve. Como se pode verificar, a teoria de Rousseau, ele mesmo um sujeito pouco afeto a sutilezas da pedestre humanidade — o filósofo confiou os cinco filhos que teve com a amante ao orfanato dos Enfants Trouvés, em Paris —, não resiste à mais branda contestação. O que dizer de filhos de pais negligentes, rematadamente egocêntricos, despóticos que se tornam indivíduos benevolentes, que sacrificam a própria vida em favor de pessoas que nunca viram antes ou mesmo de inimigos? E, por evidente, acha-se também entre os rebentos de um casal piedoso monstros que não só não têm a suposta benemerência essencial robustecida como atropelam a educação aprimorada que recebem em nome de tenebrosos ideais.
Desabridamente rousseauniano, “A Lenda de Tarzan” (2016), do britânico David Yates, apresenta essa face do herói-título, esmerando-se nas sequências em que o salvador branco volta às origens, numa África idílica e pobre de nuanças, monocórdia. Não poderia haver momento mais inoportuno para a estreia de um filme como esse do que a quadra do século 21 em estamos, particularmente confusa quanto à perspectiva da luta pela aplicação das conquistas dos direitos de pessoas negras, nos Estados Unidos e além. Não obstante, Yates opta por dobrar a aposta e chega a um trabalho cuja fulgência estética resta seriamente eclipsada devido a esse menoscabo de questões colaterais aparentemente menores, mas fazem toda a diferença e não podem jamais ser relegadas ao limbo. Ainda mais alvo do que o protagonista vivido pelo romeno Johnny Weissmuller (1904-1984) na franquia iniciada em 1932 por W. S. Van Dyke (1889-1943), o Pele Branca de Yates apresenta-se manicurado (apesar de ter passado boa parte da vida apoiando-se sobre os membros superiores, a ponto de comprometer a ossatura das mãos), enverga ternos de linho claro e ostenta uma basta e bem tratada cabeleira loura. Haja licença poética!
A última versão para as telas do clássico de Edgar Rice Burroughs (1875-1950) é encabeçada pelo sueco Alexander Skarsgård, que volta ao Congo Belga, terra em que fora criado pelos gorilas que trucidaram seu pai ludibriado por uma falsa reverência que o rei Leopoldo II da Bélgica (1835-1909) lhe quer prestar deixando que confirme com seus próprios olhos a evolução da colônia. Na verdade, o monarca está falido depois de empenhar quase toda a sua fortuna na construção do sistema de ferrovias que corta todo o território do Congo, o que vem a ser uma dupla extorsão, uma vez que boa parte do patrimônio pessoal do rei correspondia aos diamantes extraviados das jazidas congolesas mediante trabalho escravo. Na fiscalização do expediente mineiro, destacavam-se mercenários como Léon Rom (1859-1924), interpretado por Christoph Waltz. Rom fica sabendo que a nação comandada pelo chefe Mbonga vivido por Djimon Hounsou guarda uma reserva inestimável de diamantes e outras pedras preciosas em estado bruto e o soberano negro está disposto a trocá-las pela cabeça de Tarzan, que considera um usurpador das tradições nativas.
Como não poderia ser diferente, o roteiro de Adam Cozad e Craig Brewer conserva no herói aquela ingenuidade pueril — corroborando o fetiche de Hollywood por tipos grandalhões e pouco sagazes — e faz Tarzan, agora John Clayton II, o visconde Greystoke, deixar Londres, onde mora com a mulher, Jane Porter, papel de Margot Robbie, num palacete suntuoso, e embarcar nessa canoa furada, ladeado pelo diplomata George Washington Williams, de Samuel L. Jackson. Lidando com velhos sovinas que fariam inveja ao Harpagão de “O Avarento” (1668) de Molière (1622-1973) e outros tipos igualmente asquerosos, Clayton II e Williams passam por cima da dignidade um do outro enquanto tentam descobrir por que mesmo foram parar do outro lado da Terra, divagando sobre possíveis soluções para problemas de que eles nada entendem.
Se o filme de Yates tem um mérito é retratar com espantosa fidedignidade os combates entre Tarzan e sua horda de antagonistas — a sequência em que enfrenta um primata duas vezes mais forte, ajudado pela computação gráfica, é de cair o queixo. No mais, é “ooooô” de mais para enredo de menos.
Filme: A Lenda de Tarzan
Direção: David Yates
Ano: 2016
Gêneros: Aventura/Drama
Nota: 7/10