Diabolicamente engraçado e encantador, o filme na Netflix que você vai querer assistir mais de uma vez Divulgação / Alternate Ending Studios

Diabolicamente engraçado e encantador, o filme na Netflix que você vai querer assistir mais de uma vez

Um homem comum, mas estranhamente avesso a interações com outras pessoas, começa a se ressentir de seu próprio ressentimento. Ele não é exatamente um super-herói, porém nada consegue abalá-lo, nem por fora nem por dentro — até que dois eventos inesperados (e indesejados) balançam suas convicções, fazendo com que se torne, de fato, um sujeito como outro qualquer. Até então, nada era capaz de o deter, e mesmo depois de submetido a essas transformações, o sarcasmo, o cinismo, o deboche quanto a tudo que os demais julgam sagrado é sua religião. Ser gentil é para ele um desafio e ele não espera que ninguém seja-lhe cortês. Sua única ambição era viver o mais distante possível da pedestre humanidade, passando por cima das ilusões românticas de uma mulher involuntariamente próxima, mas também nisso vai sendo obrigado a condescender, tamanho o choque frente ao que a vida lhe prepara. Dessa forma, cabe-lhe esboçar a reação necessária, tirando força do que o diminui, comportamento que alguém como ele jamais apresentara. Tantas mudanças o atordoam e o levam para seu novo mundo.

O protagonista de “He Never Dies” é esse homem confuso, perdido entre preservar sua natureza misantrópica, de desprezo ao outro, e ceder à pressão do novo cenário. O diretor Jason Krawczyk fala das qualidades e dos defeitos desse personagem num thriller nada afeto a chavões e sem lugar para cara feia. O Jack de Henry Rollins é um homem já entrado em anos, mas ainda muito vigoroso, cuja história passa por uma revisão contra a sua vontade. Perfeitamente habituado a dias assustadoramente banais, em que a solidão é seu guia e sua companheira fiel, ele é atirado sem direito de resposta numa nova realidade, em que é forçado a exercitar seus instintos mais básicos. Contrariando o que sempre pensara, ele não está só no mundo, nem mesmo no seu próprio mundo. Sem prévio aviso, a vida o coloca diante de Andrea, a filha de dezenove anos interpretada por Jordan Todosey. Essa intrusa, sem que nem ele mesmo saiba por quê, mexe com ele, mesmo que não a ponto de demovê-lo de sua resistência obstinada a tudo o que não esteja estritamente ligado ao seu cotidiano e as suas inúmeras manias.

Krawczyk é muito competente ao descobrir as gretas por onde se infiltrar no temperamento do protagonista, um dos dois ex-líderes da Black Flag, paradigma do punk americano, num constante vai e volta desde 1976. Essa volubilidade decerto serviu para moldar a essência de Jack, dono de um passado tenebroso que nem mesmo Cara, a garçonete do diner onde toma refeições frugais à base de chá e mingau de aveia, consegue desanuviar. Cada vez mais atraída pelo mistério daquela figura insondável, Cara, de Kate Greenhouse não sabe o que pensar ao vê-lo com Andrea na primeira (e única) aparição dos dois juntos, mas fica visivelmente aliviada quando ouve que são pai e filha. A personagem de Greenhouse, a propósito, acaba por se tornar um elemento central na primeira guinada do roteiro do diretor. Um minuto de distração e um tipo sinistro goteja um líquido na água que Cara vai servir a seu eterno namorado platônico; a partir desse momento, tudo passa a dar errado para esse eremita convicto ou, pelo contrário, e aí que a vida começa a lhe oferecer alguma chance de ser verdadeiramente feliz, malgrado nem ele mesmo saiba se deseja esse tipo de felicidade.

Aos poucos, o espectador vai se munindo das informações que lhe permitem deduzir que Jack, a exemplo do quinteto fantástico de “The Old Guard” (2020), em que Gina Prince-Bythewood apresenta um grupo de mercenários condenados à vida, diretamente imbricados nos combates ao longo das Cruzadas dos séculos 11 e 13, ou na tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 29 de maio de 1453. Rollins, sujeito dotado do politicamente incorreto diligente que o habilita a fazer comentários nada empáticos, como quando do suicídio do comediante Robin Williams (1951-2014), é o ator perfeito para um papel tão diabolicamente engraçado — a cena em que elenca os incontáveis empregos e bicos numa conversa nada romântica com Cara, tantos que só mesmo alguns bons cem anos para dar conta deles, leva a um riso frouxo e catártico, momento em que o público sabe, afinal, com quem está lidando. Seu talento para libertar gargalhadas improváveis só é superado pela resiliência a toda prova junto à bandidagem mais rasteira, deste e de outros mundos. Nessa hora, ele fala sério como ninguém.


Filme: He Never Dies
Direção: Jason Krawczyk
Ano: 2015
Gêneros: Terror/Thriller/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.