O anestesista que não amava as mulheres

O anestesista que não amava as mulheres

Era uma vez um jovem anestesista que amava as mulheres. E amava também os homens. E mais ainda as crianças. Anestesiava os pacientes com passes de mágica. O tempo passava preso a nuvens de algodão cirúrgico. Declamava doses de penici(lira) nos requebros das veias bailarinas. Não apenas rimava, como, tratava dor com amor. Enganava os neurônios em tréplicas de hipnose. Parecia um semideus, mas, era apenas mais um homem dentre tantos a defender um trampo com distrações à morte. Tinha sorte pelos ocasos, a coragem de lidar com o sangue dos coirmãos e um indisfarçável fetiche por jalecos brancos com brasões de serpente bordados na lapela.

Gostava mais do cheiro do povo do que dos cavalos. Tinha nascido durante os escabrosos anos da ditadura militar, numa época em que um velhote afetado chamado João Baptista presidia o país e fazia uma espécie de elo indigesto, uma transição forçada pela volta da democracia, em conluio compulsório com os homens de espírito progressista que pelejavam pela liberdade. Casou-se com uma escafandrista catedrática que mergulhava nas profundezas dos oceanos mentais dos seres humanos, para caçar traumas pretéritos entre as flores neurais do hipocampo. Com ela teve uma pilha de filhas que tornavam o inferno da vida em sociedade um paraíso menos turbulento.

Trabalhava como anestesista no Hospital Nossa Senhora das Causas Perdidas. Em se tratando de esculápios, gozava de uma popularidade acima da média entre os funcionários do hospital, por tratá-los como se não fossem cilindros de oxigênio. Fazia sucesso fraternal entre as enfermeiras, desde o dia em que, hilário, decretou, sem consultar o criador do universo, que todas as enfermeiras iam para o Céu; já os médicos, apenas a metade. Apesar da piada repetida ad aeternum durante os desenrolares operatórios, era tão bem-quisto quanto pudim de leite condensado pelos colegas de profissão, mais por conta do bom humor adensado e das práticas médicas extremamente humanistas, do que pela indubitável capacidade técnica. Tinha nascido praquilo: matar de receios o medo da morte.

Já tinha enfeitiçado — valendo-se de trejeitos hipocráticos — pessoas de todas as idades, desde criancinhas de colo até velhinhos escolados. Dentro da sala de procedimentos exorbitantes, operava os demônios diversos, arrancando-lhes os carnegões e recebendo os pacientes com abraços inusitados e os já tradicionais, oportuníssimos sorrisos cirúrgicos de orelha a orelha, até ser repreendido pela enfermeira-do-retrato para fazer silêncio e colocar de volta — por gentileza — a máscara sobre o rosto. Não faltava àquele moço ser mais gentil.

Para desgosto da morte, tramava com os pacientes estratégias de divagação, de tergiversação e de sobrevivência a todo custo. Ao explicar o passo a passo da tramoia cirúrgica em prol da cura, parecia um contador de histórias encantadoras, nas quais entabulava roteiros plausíveis a qualquer mortal, sendo que quem morria no final da história era a própria morte. Colocava as mãos espalmadas com suavidade sobre a cabeça do enfermo, uma de cada lado, na altura das têmporas pulsantes e assoprava versos humanísticos de altíssimo teor literário.

Para fins pré-anestésicos, propunha variados roteiros lisérgicos com doses cavalares de palavras, convidando os pacientes a se concentrarem na direção dalgum pensamento bom, o melhor de todos, em todos os tempos. Não precisava verbalizar para ninguém ali presente que lembrança boa e premente tinha tido. Se o doente não tivesse nenhuma memória agradável na cintura qual se abarcar, que inventasse alguma ou a substituísse por um sonho, ainda que patético, como fazer voltar à vida alguém inestimável que já tivesse partido. Partia cápsulas de ternura com os dentes. O doutor alquimista tinha o perfil físico de um ciclista. Parecia um bambu envergado pelo vento, a vestir batas cirúrgicas. Então, investia o maior afeto possível sobre o moribundo, curvando o seu corpo espigado, desengonçado, até risível, na altura de um ouvido, para ministrar em sussurros os derradeiros segredos da boa feitiçaria. Quem não era de rir da situação, ria à toa. Usando o verbo e o tato, fazia dormitar até mesmo o medroso mais renitente. Daquele ponto em diante, usava as convencionais técnicas dos livros apreendidas de seus mestres magistrais no curso da medicina. Diferente dos seus pares hipocráticos, gastava mais tempo e mais lábia do que ampolas de poções psicotrópicas.

Certo dia, foi pego a soluçar choramingando detrás de um biombo, por uma auxiliar do serviço de limpeza que, imediatamente, auxiliou o bom samaritano a enxugar no rosto as próprias lágrimas. Todos os que estavam ali de corpo presente se ajuntaram, ficaram aturdidos, sufocaram os gemidos e estranharam o comportamento anormal do carismático doutorzinho. Orbitando ao seu derredor, como se fora ele o próprio astro-rei, inquiriram o que tinha sucedido de tão trágico.

Com a voz suave de uma ave, desfeita agora por engasgos, contou a curtos tragos de saliva, com os olhos embaçados de tanto sofrimento, que não contivera o choro e o desespero ao saber pelos noticiários dos terríveis acontecimentos que envolviam outro anestesista. O sujeito fora desmascarado pelos próprios colegas de trabalho. Por meio de câmeras ocultas, restou confirmado que o mau médico era, na verdade, um monstro camuflado, um profissional de comportamentos abjetos, um abusador contumaz de mulheres, pacientes de um Hospital na Baixada Fluminense. O tarado em questão tinha sido um de seus contemporâneos na mesma escola de medicina. Formaram-se juntos. Nalgum ponto do caminho, o sujeito deformara o caráter. Para desespero de muitos que, ao contrário dele, praticavam a medicina por vocação, cuidando das pessoas com amor, criatividade e poesia.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.