O filme delirante que esperou 2 anos para estrear acaba de chegar à Netflix

O filme delirante que esperou 2 anos para estrear acaba de chegar à Netflix

Tempos extremos demandam providências austeras para conter seus efeitos mais nocivos. Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), um militar sofre por se declarar abertamente contra o nazismo e o fascismo, regimes que iam arrebatando a simpatia de governos já inclinados ao totalitarismo, ao passo que motivavam a preocupação e o temor em todo o mundo à medida que avançavam e se materializavam na conquista de novos territórios e na consequente subjugação de todo um povo. Lidar com assunto tão delicado nunca é exatamente fácil, ainda mais quando se quer dar à história uma condução fluida, evitando-se o aprofundamento maior em questões que geram muito mais calor que luz, tomadas que ainda estão de uma névoa de opróbrio e incerteza mais de oitenta anos depois. Parece elementar que ignorar um passado pouco honroso não só não o elimina como pode mesmo fazê-lo voltar à vida; ainda assim, todo cuidado é pouco ao se pretender trabalhar com premissas tão pródigas de meandros que descambariam facilmente para a polêmica vazia, que sem dúvida ajudam na divulgação no princípio, mas logo caem num descrédito perigoso.

Misturando lances de reconstituição histórica a sequências de um terror assumidamente vesano, os diretores espanhóis Alberto de Toro e Javier Ruiz Caldera fazem de “Bastardoz” (2022) uma trama cuja capacidade de remodelar conceitos e extrair disso algo que até então não se vira é a exceção em meio a um universo de filmes que chegam a escandalizar pelo pouco que podem ter de verdadeiramente autêntico. “Bastardoz” é um dos tantos exemplos do efeito da pandemia de covid-19 na indústria cinematográfica. Entre seu lançamento, no Festival de Cinema de Sitges, na Catalunha, em 2020, e a efetiva divulgação, a partir de março de 2022, foram dois longos anos de agonia, período durante o qual De Toro e Caldera tiveram tempo o bastante para refletir sobre se seria conveniente trazer à luz um filme que expõe um mote tão propenso a interpretações errôneas. Assentada a poeira, enfim, o trabalho dos dois pôde ser apreciado com a devida serenidade, e o que se viu foi que o público estava ávido pela descarga de adrenalina que o terror sempre encerra, mas contrabalançada pelo teor dramático de cada subtrama.

No decorrer de uma guerra em que republicanos, de esquerda e comunistas, e nacionalistas, partidários do ditador Francisco Franco (1892-1975) e, claro, do nazifascismo, trucidam-se uns aos outros em combates sanguinários, o oficial Jan Lozano, interpretado por Miki Esparbé, é um franquista acabrunhado. Quando cai prisioneiro do destacamento comandado por seu tio, o general de Manuel Morón, esse, sim, um fascista convicto — e que aproveita a perduração do governo de Franco para tornar-se ainda mais influente entre a soldadesca —, é mandado a um território de localização indeterminada no interior, tomada por insurgentes republicanos sob o comando do sargento vivido por Luis Callejo. Lozano é um guerreiro completo, bravo, destemido, mas não sabe dirigir, e por isso passa a ter de se sujeitar ao desempenho de DeCruz, o recruta covarde e inepto de Manel Llunell, responsável por guiá-lo não se sabe para onde nem por quanto tempo. As passagens mais ricas do texto de Alberto Fernández Arregui, Cristian Conti e Jaime Marques são sem dúvida as que contrapõem os temperamentos antagônicos dos personagens de Esparbé e Llunell nesse início algo tumultuado, delicadamente afinadas à mensagem de abandono da razão que todo enfrentamento bélico encerra, aqui reforçada pelo tropo do nonsense de adversários que voltam à vida mesmo depois de fuzilados.

Há espaço para um respiro romântico fugaz e melancólico de Lozano e a guerrilheira Mata Padres, de Aura Garrido, mas o forte de “Bastardoz” é mesmo a fusão precisa de um filme de guerra à narrativa de horror, repleta dos absurdos característicos desses enredos, que chegam a cansar algumas vezes. No frigir dos ovos, De Toro e Caldera maia acertam que erram — e isso não é pouco num trabalho tão complexo. Dá para dizer que a espera, apesar de longa, acabou por ser-lhes mãe, e não madrasta.


Filme: Bastardoz
Direção: Alberto de Toro e Javier Ruiz Caldera
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.