“Vivemos envolvidos em um mundo de mecanismos e máquinas. Precisamos parar de olhar ao nosso redor para apreciar o que estamos recebendo.” O filósofo e crítico de arte inglês Roger Scruton (1944-2020) era um conservador, e por essa razão, ferrenho defensor da beleza e, mais, da importância da beleza, não apenas na arte, como na própria vida cotidiana do homem. Para Scruton, a beleza seria um presente que nos concede a vida, e, como tal deveria ser apreciada. Um presente faz reluzir o que há de melhor em nós, como uma lembrança de que não merecemos estar no mundo e, assim mesmo, estamos, sabe-se lá por que e para quê. Daí seu estranhamento diante de “artistas” a exemplo de Damien Hirst que se tornam famosos e milionários à custa de detratar a arte e sua beleza, como atestam as obras que vendem a peso de ouro. Scruton, calado ainda precocemente, no melhor de sua produção intelectual, devido a um câncer, era, como o francês Michel Foucault (1926-1984), ícone da esquerda, entusiasta da ideia de que ética e estética andavam quase sempre juntas, sendo, assim, vital a relevância de se valorizar — e se exaltar — o belo no fazer artístico: o belo serviria para que o melhor do gênero humano tivesse condições mais favoráveis de se desenvolver. A lista da Bula de hoje tem cinco filmes cujo impacto visual mediante o invulgar requinte estético suscitam na audiência a reflexão e o pensamento sobre os mais diversos temas. Os títulos, todos na Netflix, surgem do mais recente para o lançado há mais tempo, em ordem alfabética, sem cotações acerca da preferência. A beleza pode até não por mesa, mas filmes como esses são um banquete, para os olhos e para o cérebro.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
A adaptação de Maggie Gyllenhaal para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante é um debute respeitável da atriz na direção. Publicado em 2006, “A Filha Perdida” narra as desventuras de uma mulher fragmentada, incapaz de lidar com a verdade e suas consequências, ou pelo contrário, tão acostumada a ter de encarar verdades tão contundentes que tem de aumentar a dose um pouco mais a cada dia, a fim de provar a si mesma que está viva. E foi por aí mesmo que Gyllenhaal se embrenhou, sem pejo, como Ferrante, de apontar as contradições de Leda, a protagonista vivida por Olivia Colman, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Favorita” (2018), dirigido por Yorgos Lanthimos, empenhando-se por tentar encontrar o X do problema da personagem.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já está obsoleto, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”: uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não dispensasse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir seu estilo e sua visão de mundo. Um clássico à altura de sua genealogia.
Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de maneira inteiramente fidedigna. Sempre há que se fazer uma ou outra correção de rota, a fim de tornar fílmica uma narrativa pensada exclusivamente para o papel. O caso se complica o seu tanto em se tratando de textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali escrito, seja em que religião for. Em “Noé”, Darren Aronofsky se desdobra sobre alguns versículos do livro do “Gênesis” a fim de extrair deles um épico dotado de fúria, toques de psicologia e o máximo de rigor histórico que consegue. Sua interpretação da parábola do dilúvio, cercada de lirismo e fantasia, é digna de figurar como uma das grandes passagens do cinema. O diretor banca suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. Russell Crowe dá vida ao Noé que boa parte do inconsciente coletivo conhece, um homem de princípios sólidos e incorruptíveis, filho direto da linhagem de Adão e Eva. Deus, indignado com o que o homem tem feito da Sua criação, decide começar tudo do zero. O expediente de que Ele lança mão para isso é um dilúvio que irá durar quarenta dias e quarenta noites, a fim de não restar pedra sobre pedra. Para salvar os animais — puros por natureza, mesmo as feras predadoras, que o são só porque seguem seus instintos — e a descendência humana, Noé é incumbido da hercúlea tarefa de erguer uma arca pantagruélica, no intuito de abrigar todas essas criaturas e sua prole. O enredo de Aronofsky é dividido em três atos, e cada qual tem o condão de representar uma fase da trama. Noé peregrina rumo à montanha habitada por Matusalém, personagem mítico que, segundo as Escrituras, teria vivido quase mil anos e seria o patriarca da humanidade; seguem-se os instantes anteriores à catástrofe e a situação irremediável dos ímpios, em polvorosa. Este ponto da saga se conclui com a reclusão de Noé e sua família na arca, até que as águas sequem. Aronofsky é pródigo em se aprofundar na psique de tipos angustiados e obsessivos, como em “Cisne Negro” e “Pi” e tirar dali a razão mesma para a história que está sendo exibida: Noé foi o escolhido por Deus porque certamente seria o único capaz de entender Seus desígnios sem maiores conflitos existenciais. Ele cumpre a missão, guardando para si qualquer sombra de pavor ou dúvida. Pode-se especular um pouco a respeito da índole do personagem-título ao se analisar o comportamento de seus familiares, escanteados na história original. É por meio deles que o público enxerga em Noé a sua dimensão humana, frágil, errante como qualquer outra, mas empenhado em sua missão, decerto apreensivo com o que será do mundo depois da daquela resolução divina o seu tanto drástica, o que o espectador claramente percebe.
Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito magoado e frustrado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas, ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá azo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.