Filmes de tribunal só ficam completos se retratam histórias extravagantes, com bons oradores de cada lado da querela, defendendo e atacando um réu ora atônito, ora aparvalhado frente à evidência de que sua vida depende da forma como pessoas comuns, com vidas as mais diversas, hão de perceber a narrativa que se avulta naquele estranho palco; um juiz que assiste ao espetáculo do alto de uma magnanimidade que não deixa de inspirar certa desconfiança; e teses que provocam comoção, tudo isso para ou meter um homem na cadeia por alguns anos ou absolvê-lo, devolvendo-lhe assim a paz de espírito, retomada depois de alguns dias, quiçá meses, com prejuízo significativo da autoestima, da capacidade cognitiva, do prazer de viver, trocados por remorso, medo, complexo de inferioridade, paranoia. Com quase 1,4 bilhão de habitantes, a Índia coleciona muitas dessas histórias, uma vez que o sistema judiciário do país não atende de modo satisfatório às demandas de toda a população, sobretudo às dos mais pobres. Destarte, achar-se no centro de uma contenda judicial na Índia é, muitas vezes, participar de uma farsa, por mais bem-intencionados que sejam os agentes públicos, e escapar de uma condenação injusta tem a dimensão de um verdadeiro milagre.
“Tribunal” (2014) é uma crônica dolorosamente realista dos absurdos da justiça indiana, começando por certas leis de um anacronismo perigoso, que por seu turno dá margem a interpretações duvidosas do fato julgado. Capturando a atenção do espectador do início ao fim, sem os elementos feéricos de todas as histórias do gênero — e também por isso desobrigado de agradar quem quer que seja —, o diretor Chaitanya Tamhane compõe uma obra-prima em seu primeiro longa, precisamente por desconstruir a ideia, universal, da perfeição do direito, e por conseguinte de seu caráter igualitário, que mede todo cidadão pela mesma régua. Logo resta patente que existem indivíduos de primeira, segunda, quinta, décima categoria, o que na Índia tem peso especial devido ao sistema de castas, uma excrescência sociocultural que resiste ainda na vigência da terceira década do século 21.
Não por acaso, apesar de dotado de alguma instrução formal e de domínio invulgar de sua arte, Narayan Kamble pertence à extração mais pedestre da sociedade hindu. O dalit vivido por Vira Sathidar, cantor folk marata e idoso de Mumbai, abre a história se apresentando para um ajuntamento de pessoas humildes numa vila em Maharashtra, centro-oeste da Índia. Nem pôde concluir sua apresentação, entoando os versos que exortam os intocáveis a se deixar sucumbir ao esgoto das fossas, um dos poucos trabalhos que lhes resta, sobe ao palco um grupo de policiais, disposto a prendê-lo. A denúncia: a letra da canção foi levada a sério e um homem cometeu suicídio afogando nas águas subterrâneas de um bueiro. A defesa de Kamble é assumida por Vinay Vora, o advogado sofisticado, consciencioso e rico de Vivek Gomber, acostumado a se insurgir contra o modo como o Estado se organiza em casos dessa natureza. Vora bate de frente com Nutan, a representante do Ministério Público vivida por Geetanjali Kulkarni, que apesar do status de grande autoridade, mora longe, depende de trens sucateados e cheios para ir trabalhar e não descuida da família, devotando atenção especial ao marido, diabético, mas sem dinheiro para comprar o azeite rico em ômega 3 recomendado pelo médico.
Tamhane começa a esquematizar sua sátira à justiça indiana valendo-se dos personagens de Vora e Kulkarni, cada um orbitando no seu próprio universo social, mas não poupa críticas de comicidade ácida ao magistrado em pessoa, o mestre de cerimônia de toda aquela pantomima. O juiz Sadavarte, uma atuação com a medida exata de cinismo e falsa austeridade de Pradeep Joshi, encarna como poucos a noção equivocada (e cruel) do cumprimento da lei a qualquer custo, malgrado sua postura inflexível redunde em iniquidade muito maior que aquela que deu azo ao julgamento. Numa grande sacada do roteiro do diretor, Sadavarte se nega a iniciar a próxima audiência porque a querelante compareceu à Corte de braços nus. Dramático, sem dúvida, mas um exemplo apenas emblemático, caricatural do poder absolutista que essas figuras amealham, trampolim para abusos mais e mais escandalosos, mormente em países de densidade populacional muito alta e imprensa tíbia.
Não há guinadas de tirar o fôlego em “Tribunal”. Tamhane prefere se estender sobre tudo o que se esmera em relatar ao longo do filme, tecendo um enredo que comove pelo destemor. Espectadores mais sensíveis que determinados juízes decerto hão de se flagrar com essas discussões à roda do pensamento, aflitos, como todos os magistrados em toda a Terra deveriam ficar também.
Filme: Tribunal
Direção: Chaitanya Tamhane
Ano: 2014
Gênero: Drama
Nota: 9/10