Lutar pelo que se quer, perseguir um sonho como se dele dependesse a própria vida, é um imperativo básico quando se tem certeza do próprio talento e de quão justo é aspirar ao topo, mas decerto essa batalha vira uma cruzada plena de tons sombrios, um combate quase suicida quando os inimigos são tão próximos quanto discretos em seus ataques, sorrateiros, taciturnos e cada vez mais efetivos. Só os mais fortes podem sobreviver e não há outra alternativa: entregar os pontos implica permitir que os ímpios dominem o cenário com sua arrogância, seu preconceito, sua falta de decoro, seu desdém pelo outro. Ao mesmo que a juventude pode ser um obstáculo nessa empreitada, também mune o guerreiro de uma coragem incomum em gente dita madura, precisamente porque são os jovens os que primeiro se levantam contra as grandes injustiças do mundo, perpetradas por quem se acredita a régua moral e estética de todas as coisas que importam e tentam impor — e acabam impondo mesmo — sua visão de mundo, seus padrões e suas demandas junto com seus juízos de valor, seu espírito tacanho, seu ódio.
Nessa encruzilhada entre permanecer em sua vidinha ordinária, sem grandes sobressaltos, mas também sem as emoções que movimentam as águas mornas e saneiam o corpo e a alma está a personagem-título de “Beauty” (2022), o filme do nigeriano Andrew Dosunmu cujo eixo gira em torno dessa grande artista em formação, Beauty, a protagonista vivida pela bela e graciosa Gracie Marie Bradley. Negra, dona de um talento especial para a música e apaixonada por outra mulher — o que configura um grande defeito para alguém que pretende galgar cada centímetro até que possa contemplar o mundo do lugar mais alto na sociedade hipócrita e anacrônica dos Estados Unidos dos anos 1980 —, Beauty não está disposta a sacrificar nada, nem o amor nem a carreira ainda incipiente para ser feliz. O que ela certamente não sabe é que o sucesso tem seus caprichos e seus melindres e não se deixa dominar por aqueles que se provam incapazes de fazer escolhas, e a depender do que se pretira pode-se saber se alguém é ou não uma estrela apta a despontar no horizonte abafadiço do mundo do espetáculo.
Beauty começa a cantar muito cedo, na igreja que frequenta com os irmãos, Abel e Cain, personagens de Kyle Bary e Micheal Ward, e os pais, vividos por Giancarlo Esposito — finalmente deixando de lado a monotonia de performances anódinas caso em “A Última Nota” (2019), de Claude Lalonde — e Niecy Nash. Conforme Beauty floresce, como artista e como mulher, o pai lhe enxerga potencial para ser a nova grande diva do soul americano, comparável a Aretha Franklin (1942-2018), Ella Fitzgerald (1917-1996) e Billie Holiday (1915-1959), bastiões da canção de todos os tempos e negras como ela. O conflito central do roteiro de Lena Waithe é o embate entre o pai, que num olhar mais apressado só deseja ver a filha rica e famosa, nessa ordem, e a mãe, que a estimulara a aprimorar seu dom unicamente para a atividade litúrgica. Entram na equação, por obvio, a questão racial e ainda mais importante que esta, o relacionamento homoafetivo que Beauty mantém com Jasmine, a personagem de Aleyse Shannon, que se revela mero apêndice da namorada, para não dizer um adorno ou um brinquedo mesmo, conclusão inescapável depois da sequência em que Beauty, já contratada pela gravadora comandada por uma Sharon Stone em nada parecida com a Catherine Tramell de “Instinto Selvagem” (1992), dirigido por Paul Verhoeven, vai morar num apartamento no centro de Nova York e inicia um flerte com o vizinho interpretado por Joey Badass, que reclama do volume do jazz que sai da vitrola da aspirante a estrela.
Sem dúvida, “Beauty” é uma história de méritos, mas tem problemas. Quem espera assistir ao sucesso da personagem de Bradley se decepciona de saída: o filme se devota muito mais a descrever a jornada de sua protagonista até a estreia como cantora profissional, momento em que a trama congela. Se subtramas como a da dependência química de Beauty e as rusgas entre seus pais chegassem perto de um clímax — para não mencionar a própria sexualidade confusa da protagonista, quiçá traço de uma psicopatia latente —, diria que uma sequência seria urgente, mas não é o caso. “Beauty” é um dos filmes mais indecisos da história do cinema contemporâneo e se queria levantar a bandeira da defesa da causa homossexual, deu um tiro no pé que dói só de pensar. Mais incômoda ainda é vergonha que esse público há de sentir diante de tamanho vexame.
Filme: Beauty
Direção: Andrew Dosunmu
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 6/10