Filme com Clint Eastwood, na Netflix, é uma joia cinematográfica absoluta Divulgação / Warner Bros. Pictures

Filme com Clint Eastwood, na Netflix, é uma joia cinematográfica absoluta

Clint Eastwood é das poucas unanimidades do mundo contemporâneo, sobretudo quando se faz um recorte acerca da produção cinematográfica hoje. Aos 92 anos, Eastwood continua incólume no trono de realizador mais importante na história do cinema atual, mantendo uma muito bem-sucedida e bem conduzida carreira como ator e, principalmente, de cinco décadas para cá, como diretor. Exercitando sua veia empreendedora com coragem admirável desde “Perversa Paixão” (1971), Eastwood leva à tela as histórias que merecem ser contadas segundo seu apuradíssimo olhar técnico e humanista. Valendo-se dessa sensibilidade rara, que o torna capaz de jogar luz sobre os temas fundamentais da natureza humana, Clint Eastwood é um dos patrimônios mais cobiçados de Hollywood, verdadeiro capital intelectual do cinema. Todos querem trabalhar com Clint Eastwood, todos querem ser Clint Eastwood, que, claro, ostenta o monumento construído em torno de sua figura com a elegância que o caracteriza — e que conserva escolhendo seus projetos a dedo, bancando suas aventuras com uma coragem que beira a obsessão e cavando cada vez mais fundo em si mesmo, a fim de encontrar novos e mais preciosos tesouros.

“Gran Torino” (2008) é mais uma das produções fundamentais da Hollywood contemporânea, filme de formação para que se tenha a dimensão da glória e, sobretudo, do fracasso dos Estados Unidos como país. Nele, Eastwood, cada vez mais bissexto em trabalhos como ator, brilha como Walt Kowalski, veterano da Guerra da Coreia (1950-1953), cansado de guerra e da vida. O roteiro de Dave Johanson e Nick Schenk menciona uma passagem pela Ford, o que faz dele a encarnação do sonho americano por excelência, ou seja, o homem trabalhador, que faz carreira numa empresa genuinamente nacional, e ainda pode encher a boca ao relembrar a atuação como defensor da pátria num conflito em que o capitalismo era a causa mais emblemática. Talvez Kowalski só consiga ombrear em bravura com Harry Callahan, o Dirty Harry, anti-herói vivido por Eastwood em “Perseguidor Implacável” (1971), observando-se o detalhe nada desprezível de que no filme de Don Siegel (1912-1991) Eastwood era quase quatro décadas mais novo. Daí emergem duas conclusões: 1) Dirty Harry talvez tenha sido a inspiração imediata do ator na composição de Walt Kowalski; 2) apesar das rugas e do olhar ainda mais carrancudo, Clint Eastwood não envelhece.

Kowalski faz questão de manifestar seu desgosto em ter por vizinhos uma família asiática, hmongs do sudeste asiático que conspurcam a cidade de Detroit, o estado de Michigan e todo o solo americano, de acordo com sua visão de mundo racista e limitada. Vai se dar justamente por meio de Thao, o adolescente hmong interpretado por Bee Vang, a aproximação entre esses dois mundos, tão próximos e tão distantes, a princípio desastrosa — e que envolve o Gran Torino do título, carro cujo eixo de direção ele mesmo instalou nos tempos de montador da Ford. Obrigado a lidar com a morte recente da esposa, sua companheira desde essa época, sem o apoio da família, mais interessada em despachá-lo para um asilo e apropriar-se de seus bens, Kowalski faz de Thao o filho que Mitch, de Brian Haley, nunca pôde ser.

Com a grande reviravolta do enredo, em que Kowalski promove uma caçada a Spider, líder da maior gangue de Detroit e primo de Thao, já no desfecho, “Gran Torino” levanta dois postulados, o mais importante deles é que família nem sempre tem a ver com sangue. A máxima que o segue, num nível pouco abaixo, é que nunca se pode tachar que uma pessoa está pronta, por mais que tenha vivido. A experiência resta sempre incompleta quando não se é sagaz o bastante para perceber que o mundo à volta continua girando, e por conseguinte, se sujeitando a transformações de toda ordem. O mínimo que devemos fazer — como Walt Kowalski e Clint Eastwood — é nos reinventarmos também.


Filme: Gran Torino
Direção: Clint Eastwood
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Thriller 
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.