Bandidos ladinos, que enganam a polícia sem muito esforço, comandam um assalto nada convencional. Até aí, nenhuma grande novidade, assim como não representa nada de novo o fato de policiais algo caricatos liderarem as operações que tentam destituir esses criminosos de seus pedestais, ora defendendo métodos diligentemente estudados, ora tomados de fúria, aproximando-se mais do espectador comum. O que captura de vez a atenção do público em narrativas assim é a capacidade que têm essas tramas quanto a despertar toda a sorte de preconceitos que nutrimos em silêncio acerca de assuntos os mais variados, de política internacional à segurança pública de todos os dias, passando com mais cautela pelo comportamento dos agentes da lei em circunstâncias extremas, o planejamento para enfrentá-las e, por óbvio, a questão racial, que por seu turno remete de imediato à necessidade de se analisar a desigualdade social a de forma madura, abrindo mão dos tantos estereótipos que rondam essas discussões, só por isso capazes de matá-las ainda no ovo. Felizmente, ainda existem diretores destemidos o bastante a ponto de refutar o que o politicamente correto sacramenta como o jeito adequado de destrinchar esses assuntos.
O destaque em “O Plano Perfeito” (2006) é a forma como seu diretor, o grande Spike Lee, passa a entender a importância de tópicos como equidade civil entre indivíduos de grupos étnicos distintos — recuso-me a empregar o termo “raça”, eivado de um intento discriminatório por si só e biologicamente errôneo — e justiça social e de que modo a polícia metaboliza sua própria importância frente a essas urgências. Lee parece desafiar sua plateia, instigando-lhe a falsa sensação de estar interessado apenas em discorrer sobre a história, sem dúvida bem contada, de um crime cuja lógica se esfacela a cada nova sequência. Qualquer movimento é envolto numa bruma de mistério e querer apressar possíveis deduções é o caminho mais curto para mal-entendidos. Só mesmo se assistindo até o fim para se saber onde Lee pretende chegar, e assim mesmo sem garantia alguma quanto a entender do que está falando afinal.
Muito do que o diretor quer dizer sai da boca de Keith Frazier, o anti-herói vivido por Denzel Washington em sua competência habitual. Frazier, detetive de uma divisão especial da polícia de Nova York, é incumbido de intermediar a atuação de policiais de rua que planejam interromper o assalto a um dos bancos mais visados da cidade. Pelo lado dos criminosos, quem dá as cartas é Dalton Russell, de Clive Owen, que se esconde por trás de uma máscara ao longo de quase todo o filme. Logo depois que Russell esclarece o que se vai assistir durante pouco mais de duas horas, e os desdobramentos de cada lance de sua empreitada, Frazier entra em cena, primeiro nas instalações onde cumpre expediente burocrático, depois saindo a campo, a fim de averiguar os possíveis rastros da quadrilha e fazer a ponte entre os agentes e os ladrões. À proporção que o conflito se estende, fica mais claro no roteiro de Russell Gewirtz que o que está em jogo na verdade vai muito além da observação das absurdas exigências do cabeça do bando, que não hesita em distribuir bordoadas em reféns mais insubordinados, tomando o cuidado de não ferir ninguém com gravidade e, dessa forma, preservar sua margem de negociação para uma possível fuga — e do decréscimo da pena, se porventura tudo dê errado.
Quando sabe do ocorrido, Arthur Case, o presidente do banco interpretado por um Christopher Plummer (1929-2021) bastante inverossímil como um octogenário nada fofo — o texto de Gewirtz salienta que Case principiou a amealhar sua fortuna espoliando objetos de valor de judeus na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mote apropriado pelo holandês Pieter Kuijpers em “Riphagen” (2016) — aciona Madeline White, a especialista em gerenciamento de crises de Jodie Foster, mera isca falsa no enredo. Em que pese conhecer meio mundo e alardear que faz e acontece, White se presta mais a um títere patético e disforme, ora do banqueiro, ora de Frazier, malgrado nunca perca a pose.
Mais uma vez, Denzel Washington salva a pátria, fazendo questão de realçar a aura de cafajeste de seu personagem, alérgico a casamento mesmo namorando uma beldade. Passagens de um nonsense hilário, como a que envolve uma gravação em língua desconhecida, desanuviam um pouco o noir de cenários claustrofóbicos num trabalho nada óbvio (e outra vez primoroso) de Spike Lee.
Filme: O Plano Perfeito
Direção: Spike Lee
Ano: 2006
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 9/10