Hollywood é feita de histórias, tantas que a própria Hollywood não as conhece todas. Boa parte delas tem por protagonista mulheres bonitas, cada qual com um gênio, às vezes insuportáveis, às vezes doces como fadas, e eram essas as mulheres que, por acaso, também estrelavam as grandes produções do cinema. Dentre todas elas, talvez Jean Seberg (1938-1979) seja uma das menos conhecidas, e recuperar sua memória, num tempo em que confrontos interraciais continuam a ser um problema estrutural de uma das maiores democracias do mundo, é urgente. Seberg envolveu-se numa das lutas mais inglórias da América nos estertores dos anos 1960, uma década marcada por intolerância, ódio e menoscabo criminoso com o tema da igualdade entre brancos e negros, posicionamento que lhe valeu uma perseguição encarniçada do FBI, a Polícia Federal dos Estados Unidos, e o consequente ostracismo, não muito depois. A atriz, uma das que melhor encarnaram o espírito da Nouvelle Vague, o jeito auto declaradamente novo de se fazer cinema, foi varrida da história por homens que serviam o governo de turno. O inclemente tempo se encarregou de sepultar sua imagem.
Claro que filme nenhum é capaz de resumir à perfeição quase vinte anos de militância em menos de duas horas, mas a intenção de Benedict Andrews na cinebiografia “Seberg Contra Todos” (2019) é fazer com que a diva renasça. Concentrando-se sobre a atuação de Seberg em movimentos como os Panteras Negras, que pleiteava igualdade de direitos para cidadãos afro-americanos — o que acabou por lhe custar a carreira na indústria cinematográfica da América e a própria vida —, Andrews compõe um retrospecto da trajetória da estrela desde a vitória no concurso de talentos de Marshalltown, Iowa, passando por episódios traumáticos, como quase ter sido queimada viva, exatamente da mesma forma que a personagem-título de “Santa Joana” (1957), de Otto Preminger (1905-1986), hagiografia sobre a revolucionária francesa Joana d’Arc (1412-1431). Marcada na pele e na alma pela experiência com o diretor austríaco, ela vai para a França, onde se dá sua boa fase, com o movimento liderado por Jean-Luc Godard. “Acossado” (1961) escreveu seu nome com as tintas douradas do reconhecimento de público e crítica, e aos 22 anos ela era, de fato, uma celebridade.
A ascensão profissional de Jean Seberg em Hollywood fora estigmatizada pela atuação em causas humanitárias como a dos Panteras Negras, o que Andrews ressalta com honestidade cortante. Vividamente personificada por Kristen Stewart, a Seberg do diretor reacende o interesse pelas histórias que vicejam nas entrelinhas, a exemplo da que reza que a atriz teria sido assassinada por agentes do FBI a mando de políticos de primeiro escalão, defendida pelo diretor franco-americano Dennis Berry (1944-2021), seu segundo marido, que não é mencionado. Em compensação, o casamento com o romancista franco-lituano Romain Gary (1914-1980), interpretado por Yvan Attal, pontua todo o roteiro de Anna Waterhouse e Joe Shrapnel, bem como sua relação com o ativista negro Hakim Jamal (1931-1973), de Anthony Mackie, presente desde a sequência inicial, e que Andrews leva a crer que tenha sido a grande paixão de sua biografada.
Já no desembarque da it girl da nova onda representada pelo cinema francês em solo americano, esperam por ela o batalhão de repórteres e fotógrafos de sempre — que aproveitam para também registrar a chegada dos membros dos Panteras, fato que eclipsa um bocado a presença da nova namoradinha da América incorporada por Seberg. Num lance que mais parece um golpe de publicidade espontâneo, Seberg junta-se aos ativistas e faz com eles o gesto que selará seu destino, o braço flexionado, que ela se encarrega de estender por completo, terminando em punhos cerrados. Em algum lugar nas cercanias do aeroporto também estavam os espiões do FBI, liderados por Jack Solomon, personagem de Jack O’Connell. Essa sequência, dinâmica como todas as outras, resume com esmero o que passou a ser a vida de Jean Seberg nos Estados Unidos, uma sucessão de caçadas, conversas captadas por grampos telefônicos e a onipresente solidão.
“Seberg Contra Todos” não mostra, mas num quadro estampado por Stewart se lê que sua protagonista foi encontrada morta dentro de seu carro, em 30 de agosto de 1979. Ela tinha quarenta anos.
Filme: Seberg Contra Todos
Direção: Benedict Andrews
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10