O filme mais injustiçado e subestimado da história da  Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais injustiçado e subestimado da história da Netflix

Ser mulher nos estertores do século 19 era uma condição que empurrava a mulher, ou para a irrelevância mais ultrajante ou para uma vida marcada pela luta constante, e em muitas ocasiões, inócua por condições que lhe assegurassem direitos mínimos, que ninguém juiz algum jamais ousaria negar a um homem. Desde aquele tempo, existiam, e sempre hão de existir, aquelas mulheres que se davam por muito satisfeitas em gerar filhos, administrar a casa e assistir ao marido numa obediência cega e numa submissão para além do razoável — e se estão os dois de acordo, não há nada de errado nisso —, mas havia também as que não se contentavam com as migalhas que a sociedade lhes repassava pelas mãos sovinas de um patriarcado tacanho, sádico, criminoso. Refinando-se ainda mais o corte, principiavam a surgir as que recusavam todos os péssimos papéis que poderia lhes destinar o duro mundo real, driblavam as expectativas da vida que julgavam-lhes a ideal, e se transformavam no que criam ser a figura que a história esperavam que elas se tornassem.

Sem dúvida, Maria Salomea Skłodowska (1867-1934) foi dessas mulheres. Skłodowska, Marie Curie depois do casamento com o físico francês Pierre Curie (1859-1906), encarnou o arquétipo da mulher que soube construir uma carreira independente da trajetória do marido, ainda que contasse com Curie para vencer a misoginia no meio científico, ainda mais feroz à época. A diretora franco-iraniana Marjane Satrapi observa todos esses aspectos da vida de Marie Curie e compõe “Radioactive” de forma a homenagear sua protagonista, ainda que faça questão de escarafunchar feridas de sua protagonista. Seu “Radioactive” (2020) renega o que se esperaria que fosse uma cinebiografia, pretensamente laudatória de saída, para abordar as grandes controvérsias na história de Marie Curie. O resultado é um filme acintosamente honesto, estruturalmente ousado — decisão corajosa, uma vez que a pletora de analepses e prolepses deixa os mais puristas quase zonzos —, mas acima de tudo inquestionavelmente caloroso, um seu predicado que surpreende.

Rosamund Pike parece ter sido talhada para viver Marie Curie, um prodígio da ciência a despeito do tempo que se queira tomar por parâmetro. Física e química de excelência, condecorada com o Prêmio Nobel por duas vezes, em 1903 e 1911, aqui Marie Curie é emotiva, impetuosa, passional — primeiro embalada pelo teor revolucionário de suas descobertas; depois pelo marido mesmo —, o que a leva a ser também, em contraponto, vulnerável, insegura, irascível. A personalidade contagiante de Marie Curie, com a licença do trocadilho, cai como uma luva para atrizes como Pike, das mais versáteis e dinâmicas de Hollywood, e das mais capazes em fazer uma personagem virar a chave da comicidade para o drama trágico num único movimento, que assombra pela delicadeza — foi assim em “Garota Exemplar” (2014), dirigido por David Fincher; “Eu Me Importo” (2020), levado à tela por J Blakeson; e “Educação” (2009), de Lone Scherfig, nessa ordem. É esse empenho que torna sua versão da polonesa radicada na França, cientista, mas também mulher (e, portanto, dada a melindres), um tipo invulgar, que certamente passou a arrebatava aplausos depois da descoberta do rádio e do polônio, dois novos elementos que colocavam por terra postulados estabelecidos de há muito, como o que apregoava a inércia dos átomos. “Radioactive” torna-se uma narrativa tão imbricada a sua atriz principal que a participação de Sam Riley como Pierre Curie torna-se quase irrelevante, e essa impressão segue numa disparada a galope, primeiro quando, já vítima de uma tuberculose terminal, tem o crânio em pedaços ao ser atropelado por um coche, morre e volta sob a forma do que os afetos ao tema denominam como espírito zombeteiro; depois, com o roteiro do britânico Jack Thorne derivando para a segunda fase da trama, com uma Marie Curie já idosa comparecendo às frentes de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) com a filha Irène, de Anya Taylor-Joy — essa, sim, à altura da desenvoltura de Pike —, para manipular corretamente os aparelhos que salvariam muitos soldados de amputações desnecessárias e da morte por hemorragia.

Do feminismo ao raio-X, e de volta ao feminismo, “Radioactive” chega a esquadrinhar o período em que Marie Curie, acossada por pesquisas que apontaram os danos da exposição descuidada a elementos radiativos, é perseguida e ultrajada, mas acaba permanecendo na França, resistindo até onde pôde. Marie Curie morreu em 4 de julho de 1934, de anemia aplásica, um tipo raro da doença, justamente por causa da contaminação por rádio e polônio.


Filme: Radioactive
Direção: Marjane Satrapi
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10